O marco legal das eólicas offshore (no mar) aprovado neste ano (Lei 15.097/25) voltou ao centro das atenções após o Congresso Nacional derrubar os vetos presidenciais e restabelecer dispositivos conhecidos como “jabutis” – emendas que não fazem parte do foco original do projeto de lei. Com isso, foram retomados dispositivos como a prorrogação de contratos por até 20 anos no âmbito do Programa de Incentivo às Fontes Alternativas (Proinfa), beneficiando usinas de biomassa, eólicas e pequenas centrais hidrelétricas (PCHs). Também foram incluídas novas contratações obrigatórias, como 4,9 GW em PCHs e 550 MW em hidrogênio líquido a partir de etanol.
Embora algumas das medidas mais polêmicas – como a contratação compulsória de térmicas a carvão e a inflexibilidade mínima de 70% em térmicas a gás – não tenham sido restauradas (ainda serão analisadas pelos parlamentares), especialistas alertam que a mistura de fontes obrigatórias e contratos fixos ainda impõe desafios técnicos para o planejamento do sistema e aumento de custos para os consumidores.
Segundo a Frente Nacional dos Consumidores de Energia (FNCE), os dispositivos retomados pelos parlamentares resultam em medidas desnecessárias do ponto de vista da operação do sistema elétrico e, além do alto custo, têm potencial para ampliar ainda mais a já elevada sobreoferta de energia no País, num contexto em que o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) já realiza cortes significativos na geração de energia eólica e solar, o chamado curtailment. Com os jabutis em vigor, a perspectiva é de que haja retração na geração de energias renováveis.
“Já é estranho que o marco legal das eólicas offshore tenha artigos determinando a contratação de térmicas a gás e subsídios para carvão, PCHs, plantas de hidrogênio, entre outras fontes que não estão no mar nem são à base de vento. Pior ainda é constatar que a lei criada para explorar o potencial eólico nacional aumentará os cortes em usinas solares e eólicas, inclusive nas que vierem a se instalar no mar. Maior impertinência temática, impossível”, diz a nota da FNCE.
Ainda de acordo com a FNCE, a retomada dos jabutis deve representar R$ 197 bilhões em custos adicionais até 2050, equivalentes a R$ 7,5 bilhões por ano. A pressão sobre as tarifas pode resultar em aumento médio de 3,5% na conta de luz, com efeitos distribuídos entre consumidores residenciais, comerciais e industriais.
O debate evidencia um dilema central da transição energética brasileira, que é o de garantir energia firme, diversificar a matriz e manter o custo sob controle. Consultado, o Ministério de Minas e Energia (MME) preferiu não entrar na polêmica e destacou a importância da nova lei para deslanchar o segmento da energia alternativa. “O MME trabalha para a diversificação das fontes renováveis no País, como eólica offshore, hidrogênio de baixo carbono e biocombustíveis avançados, para consolidar o Brasil como referência global em energia limpa”, diz o órgão em nota.
Na avaliação do ministério, a lei das eólicas offshore representa uma oportunidade de atrair investimentos até 2050. Segundo o estudo “Cenários para o Desenvolvimento de Eólica Offshore no Brasil”, elaborado pelo Banco Mundial em parceria com a Empresa de Pesquisa Energética (EPE), no cenário mais ambicioso, a energia eólica offshore pode gerar mais de 516 mil empregos até 2050 e trazer um valor agregado bruto de pelo menos R$ 900 bilhões para a economia brasileira. Ainda segundo o levantamento, essa fonte de energia traz um potencial técnico superior a 1.200 GW, o que representa quatro vezes a capacidade instalada atual do País.
Contexto das PCHs
Se a contratação compulsória de 4,9 GW em PCHs provocou controvérsia no mercado, para o segmento das pequenas usinas isso representa um alívio, já que muitas delas têm projetos prontos, mas enfrentam dificuldades de viabilidade. Segundo a Associação Brasileira de PCHs e CGHs (Abrapch), a fonte oferece energia firme, complementa a intermitência de solar e eólica e arca com compensações financeiras à União e aos municípios, contribuindo para a receita pública.
A presidente da Abrapch, Alessandra Torres, critica a forma como o segmento tem sido tratado e enfatiza o papel estratégico das PCHs. “Não são jabutis, nem tampouco assuntos estranhos à lei como foi veiculado, mas temas correlatos. Para que uma usina eólica possa gerar da melhor forma, ela precisa de uma bateria em sua base. Há mais de 20 anos são as hidrelétricas que garantem boa parte da base que cobre a intermitência de eólicas e solares, então não é tema estranho”, diz a executiva.
“Todas as fontes de geração elétrica possuem vantagens e desvantagens, e suas características e complementaridades são essenciais para um sistema mais seguro, aponta Caio Leocadio, superintendente adjunto da Superintendência de Geração de Energia da Empresa de Pesquisa Energética (EPE). “No caso das PCHs, o custo por MWh gerado ainda é maior do que o de fontes renováveis intermitentes, como eólica e solar fotovoltaica. No entanto, especialistas defendem que os leilões de energia poderiam considerar critérios adicionais além do preço por MWh, valorizando atributos sistêmicos importantes”, diz. Entre eles, estão a prestação de serviços ancilares, como controle de frequência, tensão e reserva girante, a complementaridade sazonal, que equilibra déficits de geração de outras fontes, e a flexibilidade operacional, que permite regularizar vazões e ajustar a produção de acordo com a demanda, reduzindo perdas e custos de transmissão, especialmente por estarem próximas aos centros de carga.
Para Alessandra Torres, as hidrelétricas, mesmo as pequenas, devem fazer parte de um plano de governo, pois são uma fonte que precisa de previsibilidade. “Não se constrói uma PCH da noite para o dia. O caminho é mais longo do que as outras fontes e não compromete em nada a racionalidade econômica, pelo contrário. Quando se avalia o preço real de cada fonte, retirando externalidades, o preço das PCHs é o mais competitivo depois das grandes hidrelétricas. São usinas que duram mais de 100 anos e pagam CFURH (Compensação Financeira pela Utilização de Recursos Hídricos, revertida a Estados e municípios) e UBP (pagamento à União pela concessão de uso da água para geração), enquanto outras fontes não fazem isso”, salienta.
Da forma como existe hoje, sendo subsidiado pelo setor regulado e as hidrelétricas, o mercado livre não viabiliza as PCHs. “O modelo precisa mudar e refletir de forma justa o preço real dos atributos de cada fonte. As hidrelétricas entregam ao sistema muito mais do que aquilo para o que foram planejadas e não recebem sinal econômico adequado para isso”, enfatiza Torres.
Segundo ela, tem havido, de fato, sobreoferta de energia durante o dia com as fontes alternativas, mas a partir das 17 horas, quando 40 GW de solar caem a zero, são as hidrelétricas que ajudam a manter o sistema funcionando. “Nesse momento as hidrelétricas e parte das térmicas são convocadas a fazer a rampa de retomada para segurar o sistema elétrico de pé. Nunca se precisou tanto de energia firme como agora e não podemos prescindir das grandes hidrelétricas, mas enquanto elas não saem do papel são as pequenas que darão conta das necessidades”, sustenta.
Em termos regionais, as PCHs estão concentradas nas regiões Centro-Oeste, Sudeste e Sul. “Além do protagonismo entre as regiões do Brasil, as usinas da região Centro-Oeste apresentam como vantagem um maior fator de capacidade médio para a fonte, enquanto as usinas localizadas no Sul têm como característica a complementação hidrológica com o restante das bacias hidrológicas do Brasil”, esclarece Caio Leocadio, da EPE.
Cenário futuro
As PCHs e as Centrais Geradoras Hidrelétricas (CGHs) ocupam papel estratégico no debate sobre a transição energética brasileira. Mais do que empreendimentos de geração de energia, elas devem ser vistas como plano de desenvolvimento, aponta a presidente da Abrapch. “As hidrelétricas são política pública, porque envolvem decisões e ações do Estado para atender interesses coletivos. Seus efeitos vão além da produção de energia elétrica, pois impactam diretamente a economia regional, os usos múltiplos da água e a qualidade de vida das populações próximas aos reservatórios.”
Disseminadas em diferentes regiões do País, “as PCHs representam milhares de pequenos e microempreendimentos, responsáveis por gerar energia firme, limpa e renovável”, sublinha Torres. Além disso, oferecem contrapartidas socioeconômicas e ambientais de grande relevância. Estudo do Instituto Água e Terra do Paraná (IAT-PR) mostra que esses projetos têm reflorestado até três vezes mais vegetação do que foi suprimido para a construção das usinas, inclusive em biomas sensíveis como a Mata Atlântica. “Muitas dessas unidades, instaladas há mais de um século, continuam em operação, demonstrando a longevidade e a resiliência dessa fonte, que não gera resíduos ao fim da vida útil”, diz.
Ela destaca que, por estarem distribuídas geograficamente próximas aos centros de consumo, as PCHs ajudam a reduzir perdas na transmissão e evitam elevados custos de infraestrutura. “As pequenas hidrelétricas constroem suas próprias linhas de transmissão, sem repassar as despesas ao consumidor. Eólica e solar não fazem isso. Nesse contexto, as PCHs se mostram mais baratas que as intermitentes”, diz. Além disso, os subsídios concedidos às intermitentes distorcem ainda mais o valor do MWh. “Esse desequilíbrio se reflete no ‘preço’ dos leilões, que acaba não sendo real quando essas fontes competem entre si. Sem contar que as PCHs têm a menor pegada de carbono do que todas as fontes, segundo o IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, órgão da ONU)”, conclui.
A executiva faz questão de frisar que, apesar das vantagens das PCHs em relação a outras fontes, elas não devem ser vistas como concorrentes das renováveis intermitentes. “Colocar eólica e solar para competir com PCH é um grande erro. Essas fontes são complementares, entregam serviços e atributos distintos. Fazer geração integrada é sabedoria, já que as hidrelétricas funcionam como fonte firme e bateria natural dessas fontes. As oportunidades têm crescido, as tecnologias estão se aprimorando e barateando custos. Vale muito a pena buscar a geração híbrida com viabilidade econômica, especialmente considerando que essas fontes estão espalhadas por todo o País”, ressalta.
Para ela, modernização e armazenamento são palavras-chave para fortalecer o setor elétrico. Enquanto baterias químicas atuam em menor escala, o verdadeiro suporte do País continua sendo hídrico. “O Brasil, com a maior reserva de água doce do mundo, possui vocação hídrica e expertise reconhecida em engenharia de barragens, o que o coloca como protagonista na transição energética mundial, com 87% da matriz de fontes renováveis. Poderíamos dobrar a capacidade de geração firme e de armazenamento com usinas reversíveis, mas ainda dependemos de regulamentação adequada e um sinal econômico claro para que os empreendedores avancem. A água, como bem da União, garante que esses investimentos revertam em patrimônio para o povo brasileiro, oferecendo vida longa útil e segurança energética ao sistema”, afirma. Ela acrescenta otimismo sobre o futuro das PCHs. “Há espaço para que novas usinas sejam implantadas em curto, médio e longo prazo. Com 14 GW de projetos inventariados, poderíamos gerar mais de 1 milhão de empregos e atrair R$ 100 bilhões em investimentos”, afirma Adriana Torres.
Atributos das PCHs
- Trazem flexibilidade, disponibilidade e segurança energética
- Estão distribuídas próximas às cargas – menos perdas e investimentos em transmissão e distribuição
- Proporcionam sinergia e complementaridade com fontes renováveis intermitentes
- Aliadas do meio ambiente – baixo impacto ambiental, grande parte reversível e não geram resíduos para descarte na natureza
- Longa vida útil – existem usinas gerando há mais de 120 anos
- Propiciam melhora da qualidade dos rios – retiram lixo e dão a ele destinação correta
- Seus reservatórios aumentam a disponibilidade hídrica, regularizam vazões, valorizam o entorno e melhoram o microclima
- Reservatórios ajudam na manutenção da água subterrânea e na preservação de nascentes e mananciais, evitando assoreamento, lixo e poluição
- São ativos de descarbonização – menor pegada de carbono das renováveis, segundo o IPCC
- Propiciam uso múltiplo de turismo e fomentam a piscicultura
Fonte: Abrapch

Leilão de energia movimenta R$ 26,5 bi e viabiliza obras de 65 hidrelétricas
O Leilão de Energia Nova A-5 de 2025, realizado em 22 de agosto, resultou em R$ 26,5 bilhões em contratos de compra de energia e viabilizou a construção de 65 usinas hidrelétricas em 13 Estados. Ao todo, nove distribuidoras fecharam acordos. Os investimentos necessários para os novos empreendimentos estão estimados em cerca de R$ 5,5 bilhões, podendo chegar a R$ 8 bilhões, de acordo com o governo. Produção de energia começa em 2030.
Promovido pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) em parceria com a Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE), o certame foi exclusivo para empreendimentos de fonte hidráulica e resultou na viabilização de 65 usinas, que somarão 815,6 megawatts (MW) de potência instalada. O preço médio alcançado (R$ 392,84/MWh) resultou em um deságio médio de 3,16%, o que representa economia de R$ 864,8 milhões para os consumidores ao longo do período de fornecimento, segundo a Aneel.
Das nove distribuidoras que fecharam contratos de compra de energia, a Amazonas Energia se destacou com 148,8 megawatts-médios (MWm), seguida pela Neoenergia Coelba, que contratou 87,0 MWm. As duas juntas responderão por mais da metade da energia negociada. Também participaram do certame a Celpe, Coelce, Cosern, Eletropaulo, Energisa Paraíba, Energisa Tocantins e Light.
No total, foram negociados 384,5 MWm. Entre os novos empreendimentos, estão 55 pequenas centrais hidrelétricas (PCHs), oito centrais geradoras hidrelétricas e duas usinas hidrelétricas de maior porte. Elas deverão entrar em operação até 1º de janeiro de 2030, com contratos de fornecimento válidos por 20 anos.
Além de registrar recorde de participação, o certame superou o último Leilão de Energia Nova A-5, realizado em 2022, que contratou 22 projetos e 176,8 MW médios. Segundo o Ministério de Minas e Energia, o governo seguirá promovendo leilões voltados às pequenas e médias hidrelétricas, em linha com a medida provisória que estabelece a contratação obrigatória de 3 GW dessa fonte. Já as grandes usinas hidrelétricas deverão ter espaço para expansão em um futuro leilão de reserva de capacidade.





