Projeto transforma efluentes em água de elevada qualidade para fins industriais no polo petroquímico do ABC paulista; modelo é a um só tempo ambientalmente correto e economicamente viável.
Guilherme Azevedo
“Eu brinco com nossos funcionários que o projeto Aquapolo não tem corrimão. A gente não tem um corrimão para dizer: ‘O caminho é esse, é só seguir por ele’”, assume Marcos Koehler Asseburg, diretor-presidente. “A gente tem aberto, desde o início, o próprio caminho e tentado descobrir com acertos e erros. E acho que temos tido muito mais acertos do que erros.”
O projeto Aquapolo, situado em instalações próprias dentro da área da Estação de Tratamento de Esgotos ABC, na divisa de São Paulo com São Caetano do Sul, no ABC paulista, se transformou em bom modelo de gestão e conservação de recursos hídricos. Isso porque transforma esgoto doméstico, comercial e industrial gerado na Bacia do ABC, e coletado e tratado pela ETE ABC, em água de reúso industrial, a fim de alimentar equipamentos e caldeiras de indústrias do polo petroquímico do bairro do Capuava, em Mauá, também no ABC. Hoje o Aquapolo abastece nove plantas industriais locais, sendo a maior delas da Braskem, com consumo de 556 l/s.
O principal ponto positivo do projeto talvez seja o de oferecer uma opção economicamente viável à simples captação de água nos mananciais da região do ABC (sub-bacia do Alto Tietê), formados por rios de cabeceira, isto é, próximos às nascentes e portanto ainda em formação. É uma região hoje com baixa disponibilidade hídrica, de 130 m3/habitante/ano, abaixo do índice geral da região metropolitana de São Paulo (200 m3/habitante/ano) e bem inferior ao recomendado pela Organização das Nações Unidas (2.500 m3/habitante/ano). A ausência de fonte contínua de água para processos industriais intensivos, como é o caso do petroquímico, poderia se tornar, inclusive, um fator de êxodo industrial. A oferta de água de reúso é, sim, fator de retenção (e de atração).
“Pegar água de esgoto e transformá-la em água potável é uma equação rara”, valoriza Asseburg. O diretor-presidente do Aquapolo sublinha o que chama de “sacada” do projeto, que é a de utilizar uma fonte nem sempre homogênea, é verdade, mas perene: o esgoto de uma cidade. “Esse conceito de reúso do Aquapolo é muito mais robusto, como estratégia.”
À indústria química e petroquímica Braskem, gigante do setor, precisa ser creditado o protagonismo da história da formação do Aquapolo. O empreendimento pôde ser concretizado depois de a empresa firmar o compromisso de adquirir água de reúso industrial por 41 anos. Daí surgiu a sociedade de propósito específico, formada pela Odebrecht Ambiental (51% das ações) e pela Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp, com 49% do capital), que construiu (foram dois anos de obras) e gere o empreendimento, com investimento inicial de R$ 364 milhões. Trata-se, portanto, de uma parceria público-privada. O Aquapolo viria a entrar em operação em novembro de 2012.
Da ETE para o Aquapolo: vai nascer água pura
A tarefa do Aquapolo de produzir água de reúso industrial começa onde termina a da ETE ABC. Significa que o Aquapolo aproveita parte do esgoto tratado da estação, antes de ele ser devolvido ao rio.
Funciona assim: o efluente da ETE segue para a estação elevatória de baixa carga e dali é bombeado para a estação produtora de água industrial do Aquapolo. Naquelas instalações terão lugar os processos de purificação e adequação do esgoto tratado. Primeiro, o efluente atravessa filtros de disco, para o pré-tratamento, fase em que se retêm materiais sólidos de maior porte; depois ingressa no setor de tratamento biológico e membranas submersas de ultrafiltração.
Nessa etapa, em tanques individualizados a céu aberto, primeiro bactérias agem sobre o efluente, consumindo parte das impurezas, e em seguida membranas, que se assemelham a longos fios de macarrão branco, se movimentam velozmente sob a superfície e fazem o efluente percorrer toda a sua extensão. É desse modo que efetuam o processo de ultrafiltração, com a retenção de sólidos e bactérias de até 0,05 mícron (medida que equivale à milésima parte do milímetro).
Purificada, a água de reúso segue para um primeiro tanque. Uma avaliação de suas propriedades indica a seguir a necessidade ou não de parte do volume total se submeter ainda a outro processo rigoroso, chamado de osmose reversa. É quando se inverte a lógica da osmose e se faz com que o líquido mais concentrado migre para o menos concentrado. O líquido resultante do processo, com as especificações necessárias para atuar adequadamente no processo industrial, vai se encontrar com o restante da água de reúso no tanque de mistura e, de lá, vai para a estação elevatória de alta carga. Bombas transferem a água para os clientes industriais e para o reservatório local. Até o polo do Capuava são 17 km, percorridos em dutos de aço-carbono com 900 mm de diâmetro.
Uma rede local se responsabiliza pela distribuição para as plantas industriais, com hidrômetros medindo o volume destinado a cada uma delas. A cobrança se efetua com base no volume de m3 de água de reúso consumido, com preço mínimo prefixado que gira em torno de R$ 4,00.
O Aquapolo produz hoje 650 l/s de água de reúso industrial, mas tem capacidade instalada para chegar a 1.000 l/s. A produção equivale a 32,5% do total do esgoto tratado pela ETE ABC, que é de 2.000 l/s. A água de reúso para fim industrial serve até para consumo humano, mas dela foram subtraídos sais minerais essenciais à nossa boa saúde, de modo a preservar as engrenagens dos equipamentos industriais, reduzindo custos com manutenção.
Controle de qualidade
Embora seja um sistema de produção de água altamente mecanizado e automatizado, a intervenção humana é sempre necessária e condição para assegurar a qualidade final do produto. O Aquapolo emprega hoje 51 funcionários, sendo 28 deles dedicados à manutenção (instrumentação, mecânica e elétrica), 11 à operação e 12 à administração. A área de operação, em específico, é que monitora, 24 horas no dia, a qualidade da água produzida. Os operadores trabalham em duplas, em três turnos de oito horas, são o Robben e o Van Persie do reúso de água industrial: um monitora o painel, o sistema informatizado que consolida as informações enviadas pelos instrumentos localizados em cada uma das fases do processo de purificação da água no Aquapolo; o outro vai a campo, nas instalações locais e também no cliente, para coletar amostras e realizar testes químicos.
Nesta manhã nublada e chuvosa de terça-feira de Copa do Mundo, a dupla é formada por João Paulo Moreira, operador de painel, e Ivanil de Paula Lima, operador de campo. “Quem dita a qualidade da água para o cliente é a operação. É fundamental que exista o controle. Nosso trabalho é essencial e indispensável”, reconhece João Paulo. “Ela (a unidade) opera até sozinha, mas não com a qualidade necessária, caso não estivéssemos aqui controlando o processo em si.” No piso inferior da sede administrativa, dentro do laboratório do Aquapolo, Ivanil de Paula realiza os testes necessários com as amostras coletadas, a fim de descobrir se os níveis de dióxido de cloro, de turbidez, pH e condutividade seguem os parâmetros correspondentes: “Faço um comparativo do resultado online (aquele presente na tela de João Paulo) com a coleta de campo”. A visita ao maior cliente, a Braskem, por operadores de campo, ocorre três vezes ao dia, nos três turnos. Coletas complementares são realizadas, a cada quatro horas, com quatro amostras, totalizando 24 frascos, e enviadas para laboratório externo, com resultados saindo nas 24 horas seguintes, para substâncias, como ácido sulfúrico e ácido nítrico. “Nosso produto precisa ser totalmente preciso”, conclui Ivanil.
Novos projetos
Referência de reúso de água, com reconhecimento até internacional, o Aquapolo trabalha pela expansão de seus negócios. “Estamos abertos a novos projetos”, convida, sorrindo, Asseburg. “Todo local onde existe escassez hídrica e indústria como visão estratégica é um cliente potencial nosso.” O diretor-presidente disse identificar agora uma mudança de mentalidade de empresários com relação à questão hídrica, diferentemente do que encontrou um ano atrás. “Hoje vou a esses clientes, do sistema Cantareira ou não, e já vejo uma maturidade muito maior. Houve uma evolução muito grande.”
É mesmo bom que o interesse cresça e o reúso avance. E que outros empreendimentos similares sejam criados. A água de reúso, ainda alvo de preconceito e desconfiança no Brasil, é uma das possíveis soluções para o desabastecimento, quadro para o qual nos encaminhamos, haja vista a diminuta disponibilidade hídrica da Grande São Paulo, hoje.
Indústria consome 20% da água potável no mundo
A agricultura é, de longe, a atividade que mais consome água-doce no mundo, absorvendo 70% do volume extraído. A indústria vem em segundo, com consumo de 20% do total. Apenas 10% se destinam ao consumo humano. Os dados são da ONU.
“Reúso precisa ser amplamente debatido”
Qual papel cabe hoje ao reúso de água, como possível solução para os problemas hídricos do País? Como expandir o reúso, ainda um modelo pouco conhecido e debatido e, talvez por isso, tratado com preconceito? A revista O Empreiteiro questionou dois dos principais especialistas no assunto: Luiz Roberto Gravina Pladevall, presidente da Associação Paulista de Empresas de Consultoria e Serviços em Saneamento e Meio Ambiente (Apecs); e Giuliano Dragone, presidente do Sindicato Nacional das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto (Sindcon).
Na sua avaliação, qual é a importância, hoje, do reúso da água para a boa gestão dos recursos hídricos do Brasil?
Luiz Roberto Gravina Pladevall — O reúso da água deve ser um tema que precisa ser amplamente debatido por vários setores da sociedade. A recente escassez de água em várias regiões brasileiras coloca como fundamental a necessidade de melhor aproveitamento dos recursos hídricos no País. Por outro lado, é preciso atender às recomendações técnicas sobre os riscos, principalmente à saúde pública, que podem ser causados com a aplicação do reúso de forma indiscriminada pelos vários agentes da sociedade. A agricultura brasileira, por exemplo, demanda 70% dos recursos hídricos. Por isso, se faz necessária uma ampla política de reúso dos recursos hídricos, estabelecendo padrões e limites
para o reúso da água.
Giuliano Dragone — O reúso da água é muito importante no contexto atual de reservatórios que estão secando, uma vez que é mais uma forma de preservação dos recursos hídricos. Ela já é utilizada com sucesso em outros países, notadamente aqueles que possuem limitação de recursos hídricos, como Israel, Japão e Espanha.
O que precisa ser feito para que o reúso da água seja ampliado e diversificado no País?
Luiz Roberto Gravina Pladevall — No Japão, por exemplo, cidades já contam com sistemas diferenciados de coleta de esgoto residencial e esgoto industrial. O primeiro pode ser reaproveitado em sanitários, jardinagem, entre outros usos que não prejudiquem a saúde pública. Por isso, é preciso uma discussão técnica para ampliar o reúso de água no País. Infelizmente, o estresse hídrico já provoca o reúso de água em alguns setores. Por isso, acreditamos ser essencial uma melhor regulamentação e orientação dos diversos setores sobre a melhor forma de sua implementação.
Giuliano Dragone — Antes de investir maciçamente na ampliação do emprego do reúso da água, é necessário solucionar o problema da falta de tratamento de esgoto. Hoje, temos 85 milhões de brasileiros sem acesso adequado aos serviços de coleta de esgoto e 118 milhões – mais da metade da população – com seus resíduos de esgoto despejados in natura, sem nenhum tipo de tratamento prévio adequado. Outra questão a ser vencida é o preconceito contra a água de reúso. A administração municipal muitas vezes evita a utilização desse tipo de água na limpeza de calçadas e outros destinos, por puro desconhecimento. O componente cultural é um obstáculo porque o brasileiro tem a ideia de que a água é abundante no País, não havendo a necessidade de economia. Porém, a escassez de recursos hídricos é uma realidade com a qual os operadores já estão convivendo e para a qual estão tendo de buscar soluções. (Guilherme Azevedo)
Fonte: Revista O Empreiteiro