O Dnit conta com profissionais experientes, muitos egressos do extinto DNER, mas os quadros se reduziram de forma dramática e precisam ser recompostos com urgência
José Sergio Rocha — Rio de janeiro (RJ)
Em 2001, o Departamento Nacional de Estradas de Rodagem (DNER) foi extinto por escândalos de corrupção. Em 2011, acusações semelhantes pesam sobre o Departamento Nacional de Infraestrutura em Transportes (Dnit), que o sucedeu. Dez anos se passaram, mas a infraestrutura que faz parte da autarquia atual é ainda precária. |
As explicações variam da sobrecarga de atribuições do órgão multimodal à falta de investimentos na malha viária; do crescimento absurdo da quantidade de veículos mais pesados do que as rodovias suportam ao déficit de engenheiros; e isso sem falar no fato de o Dnit, em razão de sua capilaridade multimodal, atiçar a cobiça de políticos que trafegam na contramão dos interesses públicos.
Mesmo assim, por ter herdado mais de meio século da cultura corporativa de um órgão público de longa tradição e bons serviços prestados ao País — o DNER, que pagou caro por imperfeições humanas —, o Dnit ainda conta com a seriedade de um corpo técnico gabaritado. No que diz respeito aos programas do modal rodoviário, continua bem servido principalmente pelo conhecimento acumulado.
A vida dura de um tocador de obras
Paulista de São José do Rio Preto, apaixonado pela Amazônia e hoje radicado em Niterói (RJ), Rivaldo Caffagni se formou em Engenharia Civil pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Casou uma vez na vida: em 1970, com o DNER, do qual tentou se separar em 1997, quando se aposentou. Não conseguiu: voltou a trabalhar como consultor na BR-163 (PA), saindo há dois meses da empresa que o contratou.
Nesta entrevista, ele conta as atribulações de 30 anos de casamento profissional que, como todos os matrimônios, teve bons e maus momentos, vitórias e mágoas. Aos 66 anos, ele só aguarda uma boa oportunidade para voltar a campo, que é onde se sente melhor.
Como foi sua primeira experiência no DNER?
Foi no governo Médici, tempo do Anel Rodoviário da Amazônia, com a Transamazônica, a Cuiabá-Santarém e a Perimetral Norte. Passei quatro anos lá, vinculado ao 1º Distrito Rodoviário Federal. Trabalhei inicialmente no trecho Itaituba-Humaitá, fiscalizando desde o desmatamento até o revestimento primário. Foi um desafio construir aquela rodovia encascalhada. A obra baseou-se num levantamento aerofotogramétrico que deu origem a um anteprojeto cheio de imprecisões. A coisa só melhorou quando os topógrafos implantaram a linha-base, que é a diretriz da rodovia. Daí surgiu o projeto de campo que orientou a execução do trabalho. Só nesse período, acumulei 6 mil horas de voo nos aviões ou no helicóptero alugado pelo DNER. Só para comparar, em 2009, já como consultor do Dnit, sem qualquer apoio aéreo, apesar de solicitado, eu precisava fiscalizar 600 km de estrada, por via rodoviária. E não foi para abrir rodovia. Foi para inspecionar a pavimentação, melhoramentos e obras de arte, o que dá muito mais trabalho.
O senhor participou da inauguração da Transamazônica?
Foi o comício mais rápido que eu já vi (risos). Antes vou dizer uma coisa: a gente trabalhava no pior local do mundo. Nossa base era um lugar chamado de Prainha, no rio Aripuanã, a 30 km da estrada. Lá só se chegava de hidroavião. Vindo de Manaus, pelo rio, eram seis dias de barco. A empreiteira alugou um navio da Primeira Guerra Mundial que ficou encalhado no rio, servindo de hotel. O calor era insuportável, sabe como é… casco metálico, 45 graus à sombra e beliches tão pequenos que eu dormia sentado. Quando falaram em inauguração, naquele trecho, fui eu que marquei o local para o churrasco e para a cerimônia. Escolhi Jacareacanga, porque ficava perto de um destacamento da FAB e distante da área de atuação da guerrilha. E acendi o braseiro do churrasco. Chega, então, o avião com o presidente, com o ministro Mário Andreazza, o diretor-geral do DNER, Eliseu Resende, e comitiva. Não deu para ter uma inauguração decente. O calor de 45 graus e os mosquitos piuns (borrachudos) não deixaram. Uma moça passou mal e desmaiou. O general Médici, de terno preto, atraiu mais mosquitos do que os outros. Falei que era melhor tirar o paletó. O presidente ficou de camisa e deu para ver os braços e o pescoço ensanguentados de tanta picada. Fizeram dois ou três discursos bem rápidos. Pior que quase houve um desastre. O piloto do Avro, que tem uma asa enorme, bateu num rolo de pneus antes de decolar. Foram embora xingando a gente. Até hoje, Jacareacanga é um horror. Nem os macacos suportam os piuns. Ficam se coçando o tempo todo e fogem logo dali. Muitos de nós adoecemos naquele trabalho. Saí de lá com hepatite e malária falsiparum, a maligna.
O senhor esteve em Rondônia e mudou um projeto na marra. Como foi?
Eu só conto agora porque passou muito tempo. Hoje o TCU (Tribunal de Contas da União) encrencaria comigo. Fui trabalhar na pavimentação da BR-364, a Cuiabá-Porto Velho, em 1979. Segui para o trecho, em Ji-Paraná (RO). Um lugar perigoso, cheio de pistoleiros. Enturmei-me logo com o pessoal do Exército, no acampamento do 5º BEC. Pior do que a pistolagem foram quatro imensos atoleiros. Centenas de caminhões parados na rodovia, num lugar conhecido como Pamonha. Eu e minha equipe resolvemos o problema e fiz muitos amigos por causa disso. Mas o motivo de minha ida era pavimentar quatro segmentos da rodovia. Já fui para lá com ordens de desapropriar 400 casas em Ji-Paraná. Mas logo vi que o projeto tinha inconsistências. Sem avisar ninguém na administração, estudei uma variante na entrada da cidade, antes dos locais de desapropriação. E a estrada foi feita, com um traçado bem melhor, mais reto, sem curvas desnecessárias, economizando terraplenagem. Com isso, as 400 famílias não perderam seus tetos. Ganhei mais amigos lá. Até o governador do então Território de Rondônia, coronel Jorge Teixeira, o Teixeirão, virou meu fã. Quando me encontrava, era uma festa: “Esse aí é um homem que sabe tocar obra!”. Ele dizia isso, me apontando. Se fosse hoje, é possível que me acusassem de superfaturamento, por não ter seguido o projeto, por ter gastado onde não devia gastar e vice-versa. Mas como a conta empatou, nem souberam o que houve (risos).
Em que momento o senhor percebeu que as coisas não iam tão bem no DNER?
Lembra do atoleiro no fim dos anos 1970, início da década de 1980? Pois bem: uns 15 anos depois, na mesma BR-364, só que agora no trecho Ouro Pre
to do Oeste-Ariquemes, me chamaram para sanear aproximadamente 7 mil buracos na pista pavimentada e atoleiros. O senador Odacir Soares me esperou em Porto Velho e embarcou comigo em um helicóptero para chegar ao local. Uma tristeza! Tinha criança com fome, perigo de doença, um horror! Novamente, cerca de mil caminhões parados. O senador tentou discursar e não conseguiu. Na minha vez de subir no caminhão, com roupa de peão e botas, os caminhoneiros e seus ajudantes e familiares bloqueavam o tráfego onde dava para passar. Aí eu disse para eles que tinha vindo da praia, no Rio de Janeiro, e voltaria para lá se eles não me ajudassem a resolver os dois problemas, dos atoleiros e da buraqueira toda. Fiquei pasmo porque a estrada estava sem manutenção há 14 anos. Passei uma semana só contando buracos. Contei, e fiz questão de anotar, exatos 6.972 buracos nos 350 km entre Ariquemes e Vilhena. Buraco de metro, de meio metro e os piores, os “buracos panelas”, pequeninos, com uns 30 cm. Os piores atoleiros foram resolvidos em dois ou três dias, pois o tempo ajudou. O sol saiu. Na buraqueira, coloquei pedriscos e pó de pedra, lançados por caminhões basculantes. O tráfego melhorou com a rodagem e o revestimento betuminoso foi nivelado. No segundo mês, a massa asfáltica resolveu tudo. Nos dois anos restantes dessa temporada amazônica, corrigi trechos de quase todas as rodovias do distrito rodoviário. Obra de estrada é coisa muito séria, só ficando lá para constatar o sofrimento. Tem que ser bem feita e ter boa manutenção. Terminada uma obra em rodovia, a responsabilidade civil das construtoras é de cinco anos. O empreiteiro paga o pato, apesar dos excessos de cargas transportados na rodovia.
Fonte: Estadão