Olimpíada de 1964, com trem-bala operando, recoloca Japão no cenário global

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Apenas duas décadas após a Segunda Guerra Mundial, o país ressurge dos escombros como novo polo de alta tecnologia e defensor da paz. Joseph Young

 

Uma semana antes da abertura dos Jogos Olímpicos em Tóquio, em 1964, o imperador Hiroíto, do Japão, inaugurava os serviços do Trem de Alta Velocidade (TAV), chamado Shinkansen, que significa “nova linha ferroviária-tronco”, cujo nome de batismo era Tokaido. Era a ligação entre aquela capital e Osaka, de 497 km, percorridos em três horas e meia, a 160 km/h, reduzindo pela metade o tempo de viagem. Apelidado de trem-bala pela imprensa mundial, o nome foi adotado até pelos especialistas em transporte ferroviário, que custavam a crer que o Japão tivesse conseguido dar tamanho salto tecnológico, superando as potências europeias e os EUA neste campo, em duas décadas. A primeira linha TAV na Europa entraria em operação somente dez anos depois.

 

Não parece coincidência, mas quando o Japão conquistou o direito de sediar a Olimpíada de 1964, o governo japonês também decidiu construir o Shinkansen Tokaido, que foi entregue após cinco anos exatos de obras. Seus custos, entretanto, duplicaram o orçamento original de US$ 548 milhões, razão pela qual tanto o presidente quanto o engenheiro-chefe da empresa estatal responsável foram demitidos e não participaram da solenidade de inauguração. Anos depois, Hideo Shima, o engenheiro-chefe considerado o pai do trem-bala, foi reabilitado pela opinião pública e pelo governo e veio a chefiar mais tarde a Agência Aeroespacial do Japão.

 

Essa decisão do governo japonês sobre o trem-bala e a construção — na prática simultânea — do complexo que seria a sede da Olimpíada de 1964 em Tóquio lembra de imediato o Brasil, que ganhou sucessivamente o direito de sediar a Copa do Mundo de 2014 e, logo na sequência, os Jogos Olímpicos de 2016 no Rio de Janeiro. A história mostra que as trajetórias percorridas pelos dois países apresentam diferenciais expressivos.

 

Complexo olímpico de Tóquio

Seguindo a cultura de um país com recursos naturais limitados e a tradição de se alcançar objetivos elevados com planejamento e empenho, o comitê organizador – na verdade formado por dezenas de subgrupos – optou por reaproveitar ao máximo as instalações esportivas já existentes, incorporando melhorias e ampliações – e construir apenas o estritamente necessário em obras novas, projetadas com seu reaproveitamento posterior em mente, para uso da população local. Em último caso, apelou-se para estruturas provisórias. O conjunto de intervenções envolveu 30 sítios para os Jogos Olímpicos propriamente ditos em 1964, seis locais para vilas de alojamento dos atletas e quatro outros sítios para fins correlatos.

 

O jovem Yoshinori Sakai acende a pira olímpica em Tóquio, na cerimônia de abertura, dia 10 de outubro de 1964
 

A data oficial do início dos preparativos foi 30 de setembro de 1959, quando o Comitê Organizador foi instalado, fixando-se para agosto de 1963 a conclusão das obras e demais trabalhos. Com poucas exceções, as instalações destinadas à Olimpíada foram utilizadas na Semana de Esportes Internacionais de Tóquio, que foi realizada em outubro de 1963, um ano antes dos próprios Jogos Olímpicos.

 

Uma decisão importante foi limitar o tempo de deslocamento dos atletas em 40 minutos, independentemente do meio adotado. Assim, os conjuntos que abrigariam os atletas e os Jogos não teriam distâncias excessivas entre si. Com essa concepção, foi possível agrupar 13 dos 30 sítios dos Jogos em três locais: o Parque Olímpico de Meiji, o Centro de Esportes Yoyogi e o Parque de Esportes Komazawa. Vinte e três novas obras esportivas foram projetadas e sete instalações renovadas. Quanto às Vilas dos Atletas, não incluídas na conta anterior, o estudo dos Jogos passados permitiu projetar a estimativa de 6.500 atletas homens e 800 mulheres, que seriam alojados em edifícios residenciais existentes, evitando-se a construção de novos prédios.

 

Cinco anos foram gastos na preparação das instalações esportivas e vilas: dois anos e meio para planejamento; um ano para projetos detalhados e um ano e meio para construção. 

 

O salto tecnológico do trem-bala Shinkansen

Não bastasse ter que reconstruir literalmente Tóquio, o Japão reuniu toda a sua vontade política para reocupar o seu lugar no cenário global, colocando a inteligência de sua engenharia e da indústria ferroviária na arriscada decisão de contar com o trem-bala operando na mesma época ligando a capital a Osaka, na região mais urbanizada do país, reduzindo pela metade o tempo de viagem anterior de cerca de sete horas, como símbolo do seu renascimento como potência tecnológica.

 

Faltavam, porém, recursos financeiros, e aí o Japão recorreu ao Banco Mundial, que concedeu, em 1961, o primeiro empréstimo ao ambicioso projeto. A própria instituição reconheceu que o projeto do trem-bala, visto como arriscado e com bastante reserva pelos Estados Unidos e Europa, tinha como lastro a longa tradição japonesa no transporte ferroviário. A primeira linha férrea foi construída em 1872 pelo governo para ligar Tóquio a Yokohama, a 29 km de distância. Por volta de 1881, a rede somava 135 km. Nesse ponto, o governo incentivou o capital privado para atuar no setor, de modo que nove anos depois, enquanto a rede pública tinha 885 km, as linhas privadas alcançavam 2.124 km.

 

Inauguração do trem-bala ligando Tóquio a Osaka fez parte do projeto para receber os Jogos Olímpicos de 1964. Na época, a iniciativa foi considerada ousada. Hoje, o Shinkansen é um exemplo da eficiência da engenharia japonesa a serviço dos transportes
 

A expansão da rede ferroviária por linhas públicas e privadas prosseguiu até 1906, com múltiplos percursos curtos desconectados das linhas de longa distância, o que levou o governo a nacionalizar quase toda a malha (exceto linhas locais) para racionalizar o transporte de longo percurso. Ao final de 1907, o governo operava 6.407 km de ferrovias, conectadas a 717 km de linhas privadas locais. A expansão física da rede continuou até 1937, ao atingir 20 mil km, quando a prioridade mudou para a modernização das linhas existentes.

 

O empréstimo nº 0281 do Banco Mundial, na quantia módica de US$ 80 milhões, visava a apoiar o projeto Tokaido que tinha custo total de US$ 548 milhões, com a construção de uma linha expressa de 497 km, servindo a capital, Yokohama, Nagoya, Kyoto e Osaka, com o trem mais rápido do mundo na época. Era uma proposta ambiciosa para a região, considerada o coração industrial do país e cujo desenvolvimento esbarrava na falta de transporte ferroviário rápido. As rodovias estavam congestionadas o tempo todo, e a linha de bitola estreita estava saturada, com 186 trens de passageiros e 124 de carga operando todo dia.

 

A estatal ferroviária iniciou os estudos de viabilidade em maio de 1956. O projeto acabou aprovado em dezembro de 1958, e o primeiro trecho de obras foi iniciado em abril de 1959. A linha expressa Tokaido era eletrificada, de bitola padrão, dotada de duas vias construídas com trilhos contínuos soldados de 1,6 km sobre dormentes de concreto. As curvas eram suaves o suficiente para não reduzir a velocidade do trem.

 

Obras nas vias públicas na capital japonesa um ano antes dos Jogos

 

O trajeto exigiu a abertura de 80 túneis num total de 62 km, 18 deles medindo mais de 1 km e o mais longo – Tanna – 7,9 km. As pontes e viadutos somaram 18 km de obras de arte, por causa da topografia do terreno. Os trechos ondulados e montanhosos representavam 45% do trajeto total, ou seja, 226 km.

 

Arquiteto e urbanista japonês Kenzo Tange participou de projetos na Olimpíada e de outros marcos ao longo da
história recente do Japão

 

Conforme o projeto original, os trens de passageiros viajavam de dia e, os de carga, à noite, mantendo na prática a mesma velocidade de 160 km/h. O tráfego e os trens eram controlados pelo Controle Central em Tóquio, mantendo entre si comunicação via rádio. A composição era formada por carros de estrutura leve, equipados com motores elétricos nos eixos, com isolamento para reduzir vibrações, ruído e transferência de calor. Eram hermeticamente estanques para que os passageiros não sentissem o baque na entrada dos túneis ou ao cruzar com outro trem no sentido oposto.

 

Naquela fase inicial, os trens de passageiros eram compostos de 16 carros com capacidade para 1.250 assentos, a cada 30 minutos, começando às 6 horas da manhã, saindo de Tóquio a Osaka. Na época, as atendentes na 1a classe vestiam os clássicos quimonos. Hoje, os trens mantêm intervalos de apenas três minutos entre si, e o atraso médio é de apenas um minuto.

 

As atendentes usam agora uniformes de design, mas mantêm o clássico serviço que revela delicadeza e respeito ao passageiro. O Banco Mundial ainda realizou outros empréstimos ao Japão até a conclusão da linha Tokaido.

 

Transformação urbana radical

Segundo um depoimento do jornalista e escritor Robert Whiting, publicado no jornal da Câmara Americana do Comércio no Japão, em abril último, “a Olimpíada de 1964 gerou uma transformação urbana completa em Tóquio”. Whiting chegou ao Japão em 1962, numa unidade de inteligência da Força Aérea dos EUA. Apaixonou-se pela cultura nipônica e graduou-se em política pela Universidade de Sophia local. Chegou a ser conselheiro informal da segunda maior gangue do submundo, Sumiyoshi-kai, e editor da Enciclopédia Britânica no país. Escreveu diversos livros sobre a cultura japonesa.

 

Agora, aos 71 anos, Whiting afirma que, ao chegar ali em 1962, Tóquio era um aglomerado de casas de madeira grosseiras, favelas escabrosas e prédios de tijolos de construção barata. Havia obras por todo o lado – calçadas rotas sendo refeitas, avenidas escavadas para dar lugar ao metrô no subsolo, elevados sendo erguidos para dar passagem a vias expressas. Caminhões, alguns com três rodas, se cruzavam transportando entulho e materiais de construção.

 

Os planos de diversas agências governamentais projetavam dez mil novos edifícios residenciais, vias expressas elevadas, além de outras ligações com o Aeroporto Internacional de Haneda, como o monotrilho até o centro de Tóquio; 40 km de metrô; o novo trem-bala Shinkansen, que iria reduzir pela metade as seis horas e 40 minutos de percurso entre a capital e Osaka, viajando a mais de 200 km/h.

O novo estádio Nacional de Tóquio será construído para receber os Jogos Olímpicos 2020 no país

 

Whiting relata que “havia uma tremenda energia no ar que sugava você para dentro, tamanha a mobilização de todos. Era um assalto aos sentidos, misturados à poeira, fuligem, fumaça e névoa. A poluição gerada pelas centenas de carros nas ruas era tão pesada que os policiais de trânsito carregavam pequenos cilindros de oxigênio, enquanto os transeuntes compravam o mesmo produto em máquinas automáticas. Cafés de calçada eram protegidos por grandes cortinas de plástico transparente. Um painel eletrônico em Ginza indicava a hora, a temperatura e os níveis de dióxido de enxofre e monóxido de carbono na época. Outro painel mostrava o nível de ruído do momento, 88, comparado ao limite máximo permitido em zona residencial, 50, produzido pela cacofonia de buzinas, bate-estacas, rompedores, tratores e bondes”.

 

Japão saiu esfacelado da 2ª Guerra Mundial, enfrentou problemas de Terceiro Mundo por pelo menos duas décadas,
reconstruiu o país e se transformou em potência global

 

Tóquio já era a cidade mais populosa do mundo na época, com mais de dez milhões de habitantes por volta de fevereiro de 1962.  Naquele tempo, 500 migrantes chegavam à capital todo dia, além de milhares de trabalhadores que vinham de outras regiões pelos trens de subúrbio, desembarcando na estação Ueno, que recebia 800 mil usuários por dia. Trabalhadores de todas as idades chegavam para o serviço nas fábricas e também nas centenas de canteiros de obras, e os salários na capital eram o dobro de qualquer outra parte do país, rememora Whiting.

 

À noite, ao contrário do que se imaginava
, o ritmo das obras redobrava nos canteiros iluminados. Vias importantes tinham o tráfego desviado, bate-estacas e rompedores chegavam de caminhão para novas escavações, que prosseguiam até o dia raiar, quando pranchões de madeira eram colocados sobre as obras no subsolo. Embora menos visíveis, novas redes de esgoto estavam sendo assentadas em alguns distritos da cidade, permitindo a instalação de vasos sanitários com descarga, substituindo o sistema antigo ligado a fossas. Em 1962, menos de um quarto dos 23 bairros de Tóquio tinha rede de esgoto.

 

Muitos observadores, inclusive locais, não acreditavam que as obras novas ficassem prontas até a Olimpíada. Em fevereiro de 1963, apenas metade das obras rodoviárias tinha sido concluída. Trinta mil visitantes eram esperados para os Jogos, mas havia então leito somente para metade deles. Trabalhando sem parar 24 horas por dia até um mês antes da Olimpíada, uma nova Tóquio era visível no meio de barulho e poluição.

 

 Whiting escreve que “quatro das oito vias expressas elevadas foram abertas, trazendo alguma ordem ao tráfego caótico; duas das três linhas de metrô entraram em serviço, e as principais arenas esportivas dos Jogos estavam operando”. Em meados de setembro, o monotrilho do aeroporto de Haneda começou a operar e, no dia 1º de outubro, duas semanas antes da Olimpíada, o trem-bala Shinkansen partiu da estação Ueno para Osaka, no corredor ferroviário que se tornaria o mais movimentado do mundo.

 

Dois hotéis 5 estrelas recebiam hóspedes – Tokyo Prince, com 1.600 apartamentos, e o NewOtani, de 17 pisos, o edifício mais alto da capital, com um bar giratório na cobertura e um jardim montado com relíquias de 400 anos de idade. Uma carência visível era a escassez de banheiros públicos, que foram substituídos por unidades químicas móveis. As quatro vias expressas elevadas prontas provocavam imensos congestionamentos, porque foram projetadas com largura insuficiente.

 

A pedido das autoridades, as gangues sumiram das ruas, bem como pedintes. Os motoristas de táxi também foram convencidos a não usar as buzinas, para que Tóquio tivesse uma atmosfera mais amigável aos visitantes. O jornalista Whiting conclui afirmando que “um novo Japão estava nascendo, sendo visto pela comunidade ao redor da Terra, graças a telecomunicações por satélite, como uma potência econômica emergente. A mais explosiva transformação urbana realizada pelo homem entrou na história”.

 

Hora de reflexão

 

O que a Olimpíada de 1964 trouxe para o Japão foi um gigantesco legado – uma força tecnológica estava emergindo em um país pacifista. Cinquenta anos depois, o Japão é uma grande potência global, com nível de excelência em diversos segmentos da tecnologia, admirado por sua cultura.

 

O que o Brasil almeja com a Olimpíada de 2016, daqui a menos de dois anos? Não podemos simplesmente repetir a Copa do Mundo, que foi um tremendo sucesso como negócio, mas que deixou um legado pobre, além das arenas esportivas. Os brasileiros precisam ser mais ambiciosos. Fica aqui o desafio para as mentes mais brilhantes, os empreendedores, as instituições e o governo nos três níveis.

Fonte: Revista O Empreiteiro


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