A alegria do escritor e a satisfação do engenheiro

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Trata-se, aqui, da recomposição de uma memória histórica, cento e tantos anos depois de um trabalho que proporcionou satisfação ao engenheiro e da elaboração de uma obra-prima que proporcionou alegria ao escritor.

Estamos falando de Euclides da Cunha, fluminense de Cantagalo, que se formou engenheiro e veio trabalhar como superintendente de obras no estado de São Paulo. Dentre os serviços do alcance da superintendência estava a construção de uma ponte em São José do Rio Pardo, que era considerada estratégica para o transporte do café produzido na região, no final do século 19. Essa ponte, de responsabilidade do engenheiro francês Arthur Pio Deschamps Montmorency, ruiu um mês depois de construída. Fora projetada com três vãos somando um pouco mais de 100 m de extensão.

Nesse período, o engenheiro Euclides da Cunha havia se licenciado da superintendência a fim de seguir, como repórter do jornal O Estado de S. Paulo, para cobrir a guerra de Canudos, no sertão baiano. Ficou ali, acompanhando as operações militares, durante todo o mês de outubro de 1897, e foi testemunha ocular da tragédia final de Antonio Conselheiro e seus seguidores. Aproveitou aquele momento histórico para reunir documentos e prever a possibilidade de redigir o livro que, depois, tornar-se-ia uma obra-prima da literatura brasileira.

De volta a São Paulo, depois de esmagada a rebelião de Canudos, e sabendo do desastre com a ponte, ele decidiu tomar a ferro e fogo a tarefa de construí-la de novo. Arranchou-se no canteiro da obra, em dezembro de 1897, e possivelmente haja dito a si mesmo: “Só sairei daqui depois de concluir o meu trabalho”. Ele realizou levantamento das peças metálicas que poderiam ser reutilizadas, fez o planejamento para orientar os serviços e tudo foi reiniciado em sítio próximo do local da ponte anterior.

O importante na vivência do engenheiro é que ele nunca descurou de seu lado escritor. Ao mesmo tempo em que anotava os dados e monitorava todas as fases da construção da ponte, ia costurando a sua literatura. Pesquisou a geologia, a geografia, a flora e fauna da região por onde passaria, até Canudos, e reuniu as informações sobre os antecedentes da população sertaneja e aprofundou os estudos da psicologia humana das grandes massas desassistidas e entregues à própria sorte na solidão secular do sertão. Compôs a saga de Antonio Conselheiro numa linguagem até então jamais trabalhada com aquele apuro formal e eficiente.

Simultaneamente aos avanços da construção da ponte prosperava o trabalho de redação. De sorte que, quando a ponte ficou pronta, ele deu por concluída, também, a sua obra-prima. E engenheiro e escritor deram-se as mãos ao final de três anos de trabalho. A ponte resiste, incólume, até hoje, à passagem do tempo. O mesmo ocorre com o livro Os sertões, que acabou servindo de matéria-prima permanente para estudos, ensaios e toda sorte de consulta para uma visão abrangente da realidade brasileira. Inspirou até o romance A guerra do fim do mundo, do prêmio Nobel Mário Vargas Llosa. É o único exemplo, bem-acabado, de que se tem notícia, de uma completa interação entre um engenheiro e um escritor.

Fonte: Revista O Empreiteiro


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