A herança do inchaço urbano e da falta de investimentos

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Há menos de um século, as cidades abrigavam 10% da população do País. Hoje acolhem 80%. Com o inchaço rápido e desordenado, elas acumulam problemas de toda ordem: poluição ambiental, déficits de moradia e de transporte público. Abastecimento de água potável, coleta de esgoto e de lixo são desafios a serem vencidos nesse contexto. Embora o maior número dos municípios brasileiros (97,7%) conte com rede de abastecimento de água, perto de 20% dos domicílios urbanos não têm acesso ao sistema e 50% das residências não estão ligadas às redes coletoras de esgotamento sanitário. Cerca de 9,6 milhões de domicílios urbanos, onde habitam 60 milhões de brasileiros, não dispõem de coleta de esgoto e apenas 23% possuem fossas sépticas. Uma curiosidade: há mais residências com TV em cores do que com rede de esgoto ou fossa – 162,9 milhões de pessoas têm TV contra 123,2 milhões (32,3% a menos) com serviço de esgoto ou fossa em casa. O tratamento dos dejetos sanitários é raridade: 75% do esgoto bruto coletado (cerca de 11 bilhões de litros) são despejados in natura diariamente nos rios, córregos, praias e lagos. Além disso, 16 milhões de brasileiros não são atendidos pelo serviço de coleta de lixo e onde ela existe os dejetos são despejados em lixões a céu aberto e sem nenhum tipo de tratamento. Aterros sanitários estão presentes em apenas 13,8% dos municípios e somente em 8% dessas localidades há coleta seletiva. Os dados fazem parte da Pesquisa Nacional de Saneamento Básico (PNSB) de 2002 do IBGE. O estudo mostra, ainda, a relação direta da precariedade do saneamento e o surgimento de doenças relacionadas à má qualidade da água e contato com esgoto e lixo. Em 2000, foram registrados mais de 800 mil casos de dengue, malária, hepatite A, leptospirose, tifo e febre amarela. No mesmo ano, mais de três mil crianças com menos de cinco anos morreram de diarréia. Enquanto a taxa de mortalidade infantil dos menores de cinco anos que residem em domicílios com serviços de saneamento chega a 26,1 por mil, a dos que vivem em domicílio sem água e esgoto sobe para 44,8 por mil. O estudo do IBGE revela que houve avanços entre o final da década de 1980 e o início desta na prestação de serviços de saneamento. Entre 1989 e 2000, o número de municípios servidos por esgotamento sanitário aumentou em 10%, o volume total de água distribuída por dia no Brasil cresceu 57,9% e a cobertura do abastecimento cresceu 2%. A coleta de lixo é feita em praticamente todos os municípios do País (99,4%), o que não quer dizer, contudo, que todas as residências tenham o serviço na porta ou que a água distribuída seja tratada. Dos 43,9 bilhões de litros de água distribuídos por dia em 2000, 7,2% não passavam por tratamento. A região Norte é a que menos tem água tratada: 67,7% passa por tratamento, contra a média de 90% das demais regiões. É lá também que a coleta de esgoto é mais deficitária. Apenas 2,4% dos domicílios da região têm serviço de esgotamento sanitário, contra a média nacional de 33,5%. A região que apresenta melhor atendimento é a Sudeste, onde 53% dos domicílios têm rede geral de esgoto. De acordo com a Associação Nacional dos Serviços Municipais de Saneamento (Assemae), o investimento anual no setor tem se mantido em torno de 0,45% do PIB, com previsão de crescimento constante de 4% ao ano. Entre 2003 e 2006, foram contratados R$ 12,48 bilhões em recursos. Mas, segundo a Secretaria Nacional de Saneamento Ambiental do Ministério das Cidades, para universalizar o acesso dos brasileiros aos serviços de água e esgoto é necessário investir R$ 200 bilhões ao longo de 20 anos, o que dá uma média de R$ 10 bilhões/ano. O Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), prevê investimentos em torno de R$ 40 bilhões até 2010 e será destinado a todas as áreas que envolvem o saneamento básico – água, esgoto, resíduos sólidos e drenagem. Para abastecimento de água e esgotamento sanitário, estima-se que o valor chegue a R$ 7 bilhões/ano. A meta é ampliar o atendimento domiciliar em 7,3 milhões com rede coletora e tratamento de esgoto, em 7 milhões com abastecimento de água e em 8,9 milhões com coleta e destinação adequada do lixo. “O que nos preocupa como gestores públicos do saneamento é o que será efetivamente desembolsado do total de recursos anunciados”, diz Arnaldo Luiz Dutra, presidente da Assemae. O descompasso entre recursos contratados e desembolsados pode ser explicado, segundo Dutra, pelo hiato histórico de investimentos no setor. “Há muitos anos sem recursos disponíveis para investimentos houve uma desmobilização, deixando de se levantar projetos e de se preparar para novos recursos até então indisponíveis.” Já o superintendente executivo da Associação das Empresas de Saneamento Básico Estaduais (Aesbe), Walder Suriani, demonstra preocupação com o pós quatro anos. “O pacote é anunciado mas ele ultrapassa esse governo. É preciso saber se haverá continuidade”, diz, complementando que deve existir também um processo de afinação com governos estaduais e municipais para poder deslanchar. No final de agosto, foi divulgado o lote de municípios que terão os primeiros recursos do PAC para saneamento. A Fundação Nacional de Saúde (Funasa) selecionou as localidades tomando como base aquelas com as maiores taxas de mortalidade infantil. Também serão beneficiadas as cidades onde existem focos da Doença de Chagas e três mil escolas do semi-árido nordestino devem receber água encanada. Foram selecionados pelo menos cinco municípios em cada Estado. De acordo com a Funasa, o PAC prevê R$ 4 bilhões em recursos repassados pela entidade até 2010. Do total, cerca de 70% são destinados para municípios com até 50 mil habitantes, sendo R$ 1,6 bilhão para esgotamento sanitário, R$ 850 milhões para abastecimento de água, R$ 370 milhões para saneamento domiciliar e R$ 180 milhões para resíduos sólidos (lixo).

PARCERIA PRIVADA

Especialistas acreditam que o governo não conseguirá atender sozinho à demanda por investimentos exigida pelo setor de saneamento. Para o diretor presidente da Associação Brasileira das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto (Abcon), Carlos Henrique da Cruz Lima, “apenas a união dos esforços entre público e privado mudará os índices de saneamento básico do País. O mercado é grande e carente de investimentos e as empresas eficientes e qualificadas terão espaço, sendo elas geridas pelo setor público ou privado.” O presidente da Abcon revela que as parcerias público-privadas (PPP) são excelentes alternativas para trazer re

cursos para o setor. “As PPP’s podem ser elemento fomentador do desenvolvimento da infra-estrutura, mas para isso um conjunto de medidas precisa estar funcionando: marcos regulatórios setoriais claramente estabelecidos, agências reguladoras com atuação fortalecida, arcabouço jurídico consolidado, regras de contabilização dos investimentos em PPP´s esclarecidas e estudos precisos e justificados para uma adequada repartição de riscos entre os parceiros da PPP.” Lima lembra que mesmo sem regras claras a gestão privada tem apresentado resultados positivos de produtividade, gestão e tecnologia. “A média de perda de água no País é da ordem de 40%. Na Águas de Limeira, primeira empresa concedida para a iniciativa privada, em 1995, o índice atingia 17%. Isso significa respeito ao meio ambiente e ao bolso do usuário, uma vez que as perdas certamente eram pagas pelas tarifas.” A participação privada detém 7% do mercado brasileiro, atendendo 8,8 milhões de pessoas, e tem previsão de investimentos de R$ 5 bilhões de reais, dos quais R$ 1 bilhão nos próximos cinco anos. A perspectiva, segundo o presidente da Abcon, é que a gestão privada passe para 30% nos próximos dez anos.

OS CONTRASTES NO BRASIL REAL

Quando se trata de saneamento, no Brasil há casos exemplares, com serviços comparáveis ao de países desenvolvidos. Bananal, no interior paulista, tem índices de distribuição de água e tratamento de esgoto que atingem 100%, percentual similar ao de países como Austrália e Bélgica. Existem outros de tal precariedade que parece terem saído do século XIX. É o caso de Manari, no sertão de Pernambuco, município que tem o pior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do País: 0,467. No local, distante 400 km do Recife, o abastecimento de água só chega a 16,2% da população e apenas 17% do lixo é jogado em aterros sanitários. Perto de 120 crianças a cada mil morrem antes de completar cinco anos de idade no município de 13 mil habitantes – 82% deles morando no campo. A falta d’água é o mais grave. Até 2004, havia apenas uma cisterna disponível, em um ponto afastado da cidade, onde as pessoas iam buscar água logo de madrugada. Nos últimos dois anos novas cisternas foram construídas, mas água encanada ainda é miragem. Alguma melhoria poderá vir do governo federal, já que o município foi incluído na lista da Funasa para receber verbas do PAC. Quem também está na expectativa de receber recursos federais são os 4.500 habitantes de Jordão, no Vale do Purus, distante 640 km de Rio Branco no Acre, que só ganha de Manari no IDH. Na cidade, apenas 18% da população contam com abastecimento de água e 34% têm algum tipo de coleta de esgoto, a maioria por fossa séptica. A coleta de lixo atinge apenas 22% do município. Segundo a prefeitura, 80% da população é composta por índios e pouco mais de 300 famílias (mil pessoas) moram na área urbana. No Maranhão, Brejo da Areia desponta como um dos municípios mais carentes do Estado. Também foi escolhido pela Funasa para receber recursos do PAC. No precário sistema de abastecimento local, a água é bombeada, sem nenhum tratamento, diretamente dos poços – artesianos ou comuns – para chafarizes espalhados pela cidade. Dali, são encanados pelos próprios moradores para suas casas. Quem não tem condições de fazer o encanamento, tem de percorrer longas distâncias até os chafarizes para garantir a água, que só corre pelos canos na parte da manhã. No município de 9 mil habitantes, a mortalidade infantil é de 75,38% e o esgotamento sanitário não ultrapassa 2%. Não há coleta de lixo e a cobertura do abastecimento de água atinge 0,24%. Assim como em tantas cidades nordestinas, em São Francisco do Conde, no Recôncavo Baiano, a população de 30 mil habitantes vive de maneira precária. Paradoxalmente, o município tem PIB de R$ 10 bilhões devido à produção e refino de petróleo em suas terras – possui a segunda maior refinaria do Brasil. È considerado o maior PIB per capita brasileiro, R$ 283 mil, segundo o IBGE. Mesmo sentada no tesouro, a maioria dos moradores não recebe mais de R$ 200 mensais. O município sofre com a falta de habitação digna, escolas, saneamento e serviços saúde. A coleta de esgoto não ultrapassa 35% das casas, os dejetos são jogados no mangue e 40% não têm água encanada. Luiz Henrique Basanez, secretário de Infra-estrutura, atribui parte dos problemas de São Francisco do Conde aos desmandos da política. O município teve quatro prefeitos desde 2002, os três primeiros apeados do poder por delito eleitoral ou corrupção. “É complicado levar um projeto à frente”, afirma Basanez, que espera poder contar com mais tranqüilidade na administração e recursos do PAC para poder dinamizar os serviços de saneamento na cidade. Contrastando com centenas de municípios, há nove anos, Cachoeiro do Itapemirim experimenta avanços no setor de saneamento. Após a concessão do serviço de água e saneamento à iniciativa privada, ele conseguiu modernizar as redes de abastecimento e ampliar em 60% a oferta de água tratada, garantido o fornecimento 24 horas por dia. Operado pela Citágua, o serviço incluiu a construção de uma Estação de Tratamento de Esgotos (ETE) que permitiu reduzir em 95% a carga orgânica lançada no rio Itapemirim. A empresa coloca em prática o Programa Córrego Limpo, com objetivo de eliminar o lançamento de esgotos nos córregos da cidade. Serão investidos R$ 10 milhões nas obras.

Fonte: Estadão


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