O sociólogo Francisco de Oliveira e o filósofo José Arthur Giannotti, críticos, por diferentes motivos, do governo Lula e do "PT Neoliberal", acreditam que a crise mundial pode despir a fantasia de que "está tudo bem no Brasil", exigindo dos governantes e da sociedade a definição de um projeto de Nação,
de longo prazo
Quais os efeitos da crise global na política brasileira? Terá ela a capacidade de por fim à "política da ilusão" do presidente Lula, que tenta passar a idéia de que o Brasil vai muito bem? Seremos, finalmente, pressionados a promover um amplo debate nacional para definir que País queremos construir, a partir de uma nova conformação do capitalismo? Estamos preparados para uma nova ordem econômica mundial, que deverá advir da crise global? Até quando o Brasil vai continuar crescendo sem a formulação de um projeto de Nação, de longo prazo? Esses foram os temas propostos à discussão pelo jornal "O Estado de São Paulo" ao sóciólogo Francisco de Oliveira e ao filósofo José Arthur Giannotti, ambos da Universidade de São Paulo, ex-companheiros no Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento) e integrantes do grupo de intelectuais que, em 1980, assinou a ata de fundação do Partido dos Trabalhadores. Hoje, dois críticos afiados do Presidente Lula e do PT Neoliberal.
O resultado foi uma análise profunda e lúcida do momento em que vivemos – crise financeira, democracia, sociedade, corrupção e as perspectivas de futuro, que ocupou duas páginas do suplemento "Aliás", sob o título Despindo o ‘país da fantasia’, publicado em 20 de dezembro de 2008, cuja leitora ajuda a entender o Brasil – o que queremos e o que queremos mudar. A seguir, alguns trechos muito esclarecedores do debate.
A crise
José Arthur Giannotti – Qual é o efeito da crise global na política brasileira?
Se nós continuarmos com essa hegemonia lulista do encobrimento das diferenças, o Judiciário continuará legislando e o Executivo ficará, como o Legislativo, sujeito ao balcão de negócios. Mas se a crise conseguir arrebentar com essa "política da ilusão", ou ao menos colocá-la em xeque, daí teremos uma situação interessante e é para isso – insisto – que nós devemos estar preparados. Seremos obrigados a discutir que país iremos começar a construir, a partir de uma nova situação, de um capitalismo que também estará se reestruturando. Noutro dia eu estava conversando lá no Cebrap sobre qual seria a saída política para a crise. Não acredito, por exemplo, que os Estados Unidos aceitarão qualquer intervenção em sua política relativa ao Banco Central. Alguma coisa, porém, terá de ser feita: não sei se reforço do FMI, se mais controle internacional. Mas que tipo de controle seria este? Tenho a impressão de que a tendência é a de que Estados nacionais fortificados estabeleçam determinados protocolos e fechem acordos. Acordos que vão durar até que um desses Estados se sinta mais forte para quebrá-los, como a história comprova, basta lembrar de Breton Woods.
(…)
Giannotti – Que tipo de controle haverá nos Estados nacionais para que eles possam participar desses protocolos?
E como é que vamos poder controlar os protocolos? A crise nos colocará diante de uma questão básica, a democracia. Teremos de pensar que tipo de democracia queremos no Brasil porque, se não o fizermos, não seremos parceiros internacionais. Se não tivermos uma democracia forte, em que os partidos consigam pautar os adversários, como diz você, cairemos no quê? Em fantasias do passado – como essa equivocada política Sul-Sul cujos resultados estamos vendo. Ou seja: a questão primordial hoje é como nós podemos melhorar nossa democracia. A meu ver, precisamos de uma democracia vigilante, atenta às diferenças do pensamento político que o lulismo veio apagar.
(…)
Francisco de Oliveira – Nesse aspecto o papel dos Estados Unidos é fundamental, a ponto de que um antiamericanismo tolo, hoje em dia, perde completamente o sentido. Porque a solução da crise passa por lá. Nós vimos o barateamento do custo de produção da força de trabalho norte-americana num processo em que foram inseridos no mercado de trabalho nada menos que 800 milhões de pessoas, vindas da China e Índia. Esse Obama está condenado a ser um novo Roosevelt. Vai ter de bater o martelo e abrir um vastíssimo programa de investimentos no próprio país, do contrário não quebrará essa equação em que os Estados Unidos passaram a depender da China.
Investimentos
Oliveira – O governo Lula é neoliberal. O de Fernando Henrique foi um governo de transição, de muitos riscos.
Giannotti – A única coisa que eles não conseguiram fazer, e os governos neoliberais da Europa fizeram, foi a privatização da Previdência. Mas noutro dia vi um levantamento de como foram os gastos do governo federal de janeiro até outubro. Se não me engano, tivemos R$ 160 bilhões para a Previdência; R$ 106 bilhões para programas sociais e custeio; R$ 102 bilhões para pessoal; e R$ 20 bilhões em investimentos. Se Obama fosse eleito presidente da República aqui, ele não poderia fazer nada do que pretende nos Estados Unidos, porque com R$ 20 bilhões de investimentos ninguém faz nada.
Neoliberalismo não é liberalismo. Ele implica o desmonte da Previdência Social e em seguida um aporte de recursos para aquelas pessoas que ficarem fora do mercado. O que o neoliberalismo quer, acima de tudo, é o bom funcionamento do mercado.
Oliveira – É Milton Friedman (economista norte-americano, Nobel de 1976).
Giannotti – Isso. Você atua no mercado para que ele possa funcionar bem. Você atende o pobre, mas até chegar ao mercado, porque nessa hora ele entra na concorrência. Então, só por esses números de distribuição da arrecadação dá para concluir que este governo é profundamente neoliberal. Estamos assim: de um lado, travados pelo amortecimento do jogo político e, de outro, por um perfil de gastos que impede a construção de uma indústria nacional, de infra-estrutura, etc.
Eduacação
Giannotti – Disso (Nota da Redação: da crise mundal) pode vir um capitalismo mais interessante, porque aquele que conhecíamos, e tal como conhecíamos, já não existe mais. Se isso ocorrer, sairemos com uma desvantagem enorme, porque não resolvemos nosso problema da educação. E aí a culpa é tanto do governo quanto da oposição. Aquela grande transformação que esperávamos não aconteceu nem no governo Fernando Henrique nem no governo Lula. Estamos atrasadíssimos. Se, através dessa nova forma de capitalismo, com suas novas regulações, não tivermos investimento em educação, ficaremos ainda mais atrasados em relação a esse novo mundo que vai surgir. Isso é muito grave. Não adianta a gente ter simplesmente planos. Chega de planos! Precisamos é de uma agenda. O que eu quero saber é, com os recursos atuais, o que nós vamos fazer hoje, amanhã, que metas vamos cumprir daqui a cinco anos, independentemente de quem será o presidente da República ou o governador. O País depende dessa agenda para sair do buraco, ou para não cair no buraco.
PAC
Giannotti – O valor do PAC dentro do orçamento nacional é uma piada, mas é o que sustenta o projeto de sucessão do presidente Lula. Agora, uma coisa é o PAC e outra coisa é a ilusão do PAC.
Oliveira – Uma lista de investimentos é facílima de se fazer. Olhe para as cidades brasileiras. Elas viraram acampamentos! Assentamento do MST é melhor do que a periferia de São Paulo hoje. Está na cara que é preciso investir no sistema de transporte público, em todas as cidades brasileiras. O Ministério das Cidades está aí, mas não disse a que veio. O problema é transformar a lista numa agenda. Isso é crucial.
Giannotti – É crucial, mas outra vez esbarramos nesse véu da ilusão que cobriu o País sob o lulismo. Há uma enorme crença de que estamos caminhando bem e os problemas estão sendo resolvidos. E a crise nos joga diante de uma série de situações que não têm sido tocadas. Ou a crise nos leva a colocar o pé no chão ou viraremos de fato o "país da fantasia". O país do futuro, no futuro.
Ciência e tecnologia
Oliveira – Fico muito impressionado com essa euforia, por exemplo, em torno do pré-sal. Estamos eufóricos porque vamos nos tornar uma nova Arábia Saudita?
Achamos realmente que a agenda do novo capitalismo vai ser pautado por isso? Me parece que o novo sistema não será pautado por quem tiver mais ferro ou mais petróleo, mas por quem dominar melhor as tecnologias.
Giannotti – Hoje não existe mais uma divisão básica entre ciência e tecnologia. Agora temos a tecnociência, um novo paradigma de uma ciência altamente ligada à tecnologia. Diante disso, precisamos de uma alta integração dos intelectuais, uma integração em rede.
Temos no Brasil muitos núcleos importantes, mas sem integração.
Corrupção
Giannotti – Como fica o homem público? Ah, virou marchand, num tempo em que a política foi depreciada em favor das negociações diretas. Quando falei, lá atrás, que há na política uma certa zona de amoralidade, onde negociações acontecem, quase me comeram. Mas é justamente nessa zona de indefinição que se cria o novo. Só que, em outros países, se o sujeito cruza a zona de amoralidade e parte para a corrupção, ele é punido. Aqui, não. O Congresso é o exemplo maior disso.
Oliveira – Ignácio Rangel (economista maranhense) já dizia que a corrupção é o condimento do capitalismo.
O problema é quando o condimento se transforma no prato principal. Um pouco de corrupção sempre irá acontecer nessa zona cinzenta, pois ela está ali, na interface entre Estado e mercado. E, portanto, sendo estrutural, só pode ser controlada pela ação republicana. Agora, o que vemos hoje nas diferentes esferas de poder é um jogo de cumplicidades, feito para acabar em empate e dentro do qual a denúncia original se perde num buraco negro.
Giannotti– Tudo isso tem muito a ver com a falta de identidade dos partidos políticos. Quando tivemos o primeiro episódio do mensalão, e o PSDB, naquele momento, soava como arauto da moralidade pública, apareceu o caso Eduardo Azeredo (ex-governador de Minas pelo PSDB, acusado de operar esquema fraudulento de financiamento de campanha). A obrigação do PSDB ali era entregar o Azeredo, e não protegê-lo. Foi um erro. Então os dois partidos básicos no confronto político, o PT e o PSDB, acabaram se igualando como partidos mensaleiros.
Vale retomar a história de Roma. Enquanto havia a república, controlava-se ou tentava-se controlar a corrupção. Quando veio o império, foi o descalabro total. Estamos talvez entrando numa fase imperial da corrupção brasileira, na qual ela não é sequer questionada. Isso, dentro de um sistema jurídico que prende por quase dois meses uma jovem pichadora de um saguão de exposições vazio, mas solta banqueiros corruptos depois de dois ou três dias.
Fonte: Estadão