A greve em canteiros de obras do PAC, em especial na usina hidrelétrica de Jirau, em Rondônia, onde eclodiram cenas de vandalismo, está levando à analogia entre o que ocorreu aqui e agora e as políticas praticadas nos megacanteiros do passado recente
*Canteiro da Ilha Solteira
O incêndio contra instalações e meios de transporte, as agressões físicas no canteiro da usina hidrelétrica de Jirau e paralisações registradas na usina hidrelétrica de Santo Antônio, Belo Monte e Teles Pires, no mês passado – o que motivou até a intervenção da Força Nacional de Segurança e da Polícia Militar local em alguns desses canteiros – mostram que tensões sociais geradas por motivos diversos continuam aguçadas. Elas resultam, em geral, da insatisfação em relação a salários, condições inadequadas de higiene e segurança, mobilidade e falta de comunicação com familiares deixados em regiões longínquas.
Canteiros de obras são ambientes de convergência de todas as diferenças humanas e onde qualquer fator de desequilíbrio pode ter o efeito de um rastilho de pólvora. Se a percepção dos administradores das obras não for capaz de identificar, na raiz, a origem de qualquer movimento que contraste com a normalidade aparente, a situação pode sair de controle. Depois, a reorganização do contingente e das equipes, para o recomeço dos serviços, pode constituir um desafio maior do que a própria obra.
Historicamente há diferenciais acentuados entre os megacanteiros atuais e aqueles montados para obras do porte do Complexo Urubupungá/Ilha Solteira, Porto Primavera, Itaipu, Tucuruí, Itumbiara, Segredo, Três Marias e as obras Paulo Afonso, Moxotó, Sobradinho e outras ao longo do rio São Francisco.
As circunstâncias são outras e, atualmente, pode-se argumentar que a consciência do trabalhador evoluiu. Ele conta com sindicatos mais organizados e o impacto dos movimentos que ele provoca adquire visibilidade, o que os tempos dos chamados anos de chumbo não permitiam.
É unânime o reconhecimento do direito constitucional às greves, conquanto existam mecanismos legais para que elas sejam realizadas. E, jamais, devem recorrer à destruição de máquinas, equipamentos, instalações e outros bens. No caso de Jirau, a Justiça do Trabalho decretou que ela era ilegal e que os serviços deveriam ser retomados imediatamente.
Os trabalhadores de Jirau e da usina Santo Antônio, que somam aproximadamente 35 mil, acabaram aprovando o fim da greve, conforme anunciou o Sindicato dos Trabalhadores da Indústria da Construção Civil de Rondônia (Sticcero). Eles aceitaram acordo negociado com as empresas, que lhes garante reajuste de 7% para aqueles que ganhavam até R$ 1.500,00 mensais e de 5% para quem ganhava mais do que isso. Adicionalmente havia a promessa de outras melhorias, incluindo a cesta básica. Apesar disso, e embora a maioria se dispusesse a voltar ao trabalho, um grupo minoritário criou dificuldades no canteiro de Jirau, agindo com violência contra os demais, o que levou a administração das obras a suspender os trabalhos, até que a normalidade voltasse e fossem construídos novos alojamentos.
A EXPERIÊNCIA DO PASSADO
Os tempos são outros, a visão de mundo e de obra mudou e as políticas públicas nesse campo também são outras. Antes, eram estatais, como a antiga Cesp, Itaipu Binacional, Eletronorte, Chesf e outras mais, que contratavam as obras cujas atividades se refletiam na organização e operação dos megacanteiros.
O Complexo Urubupungá/Ilha Solteira, no qual operou a Camargo Corrêa, chegou a contar, no pico, com um contingente de 35 mil trabalhadores. Cerca de 70% deles foram contratados na região de Urubupungá (num raio de até 100 km do local da obra); 25% procediam de cidades do interior paulista e somente 5% eram de outras regiões do País.
Em Jupiá foi montada a Vila Piloto, nas proximidades de Três Lagoas (Mato Grosso do Sul), que dava total apoio aos trabalhadores, o que levou, mais tarde, à ideia de se construir um núcleo urbano permanente ao pé da obra de Ilha Solteira: a cidade de Ilha Solteira, projetada pelo escritório do arquiteto Ernesto Carvalho Mange, e que atualmente têm vida autônoma. Possui campus universitário, indústria, setor de serviços, turismo e outras atividades que empregam a população ativa.
O canteiro de Itaipu, para a construção da usina hidrelétrica do mesmo nome, reuniu trabalhadores dos consórcios Unicon (brasileiro), formado pelas empresas Cetenco Engenharia; Companhia Brasileira de Projetos e Obras (CBPO), Camargo Corrêa, Andrade Gutierrez e Mendes Júnior, e pelo consórcio Conempa, formado pelas empresas A. Barrail Hermanos; Cia. General de Construcciones; ECCA S. Ing. Civil Hermanos Baumam; Ecomipa e outras do Paraguai.
Itaipu chegou a agregar, no pico, cerca de 40 mil trabalhadores (24 mil brasileiros e 16 mil paraguaios) e ensejou a construção de milhares de moradias para abrigar os chamados barrageiros. A Vila C, um dos bairros mais populosos de Foz do Iguaçu, surgiu em razão de Itaipu.
Podemos citar, ainda, dentro outros, o exemplo do canteiro da Usina Hidrelétrica de Tucuruí, no rio Tocantins (Pará), construída também pela Camargo Corrêa, onde operaram cerca de 40 mil trabalhadores. Ali foram construídas vilas temporárias e permanentes para os trabalhadores da obra. As vilas permanentes estão dotadas de toda a infraestrutura de energia, abastecimento e esgotamento sanitário, com supermercados, escolas, creches e clubes sociais.
Nesses e em outros canteiros, como os da Chesf, há histórias de engenheiros residentes e de mestres de obras que conheciam os nomes e até antecedentes de muitos dos trabalhadores de suas equipes, formadas por mais de 200 ou 300 homens. O engenheiro residente conhecia as peculiaridades de cada trabalhador sob a sua responsabilidade e sabia estabelecer com eles um processo de interação regido pela confiança recíproca.
Nos referidos canteiros os trabalhadores eram conscientizados de que estavam ajudando o desenvolvimento do País e que eram agentes essenciais desse processo.
Os canteiros contavam com serviço social orientado para aferir os sentimentos e expectativas dos trabalhadores; com sociólogos responsáveis pelos estudos de comportamento da massa trabalhadora e as diferenças de traços familiares e de origem social entre eles, e por funcionários que cuidavam de orientar e ativar práticas que fortalecessem laços sociais.
Obviamente vivia-se, naqueles tempos, o medo ocasionado pela ditadura e possivelmente
esses trabalhos sociais junto aos operários tivessem finalidade complementar de monitorar-lhes os movimentos nas megaobras de engenharia. Nem por isso esse acervo de conhecimento deixa de ser uma rica experiência para práticas saudáveis capazes de reduzir tensões sociais em contingentes humanos unidos pelo trabalho comum, mas invariavelmente divididos por diferenças de origem, em um país continental.
As questões salariais podem ser importantes, mas jamais serão tudo. E, os novos gestores dos megacanteiros devem considerar que sempre há margem, no custo da mão de obra (ver estudo do engenheiro e consultor Remo Cimino, nesta edição), para agregar o custo social dos aumentos salariais, considerando o custo final das construções. Isso pode eliminar o custo político da eclosão de greves que poderiam ser neutralizadas na origem. (NCO)