Capital centenária terá preservado apenas o Plano Piloto

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A previsão é de que nos próximos anos
as cidades satélites poderão abrigar até
10 milhões de habitantess

Marisa Marega

Concebida para ser um modelo de cidade preparada para abrigar a administração federal, Brasília sofreu graves distorções em sua proposta original, e o que se vê na prática é um crescimento desordenado e explosivo,com problemas semelhantes aos das metrópoles do País
O arquiteto Carlos Magalhães, que chegou a Brasília convidado por Niemeyer, em 1959, é um dos precursores que lá permanece, e que até hoje representa o escritório do mestre. Ele aponta os desvios de rumo que têm desfigurado uma das mais modernas cidades planejadas do mundo,em entrevista à revista O Empreiteiro." Quando Lucio a projetou era outro o contexto. O setor Sudoeste virou este mundo de ocupação. E o setor Noroeste a mesma coisa. O Lucio sempre disse que novas construções deviam ser feitas apenas quando fosse necessário. A ideia não era sair construindo por aí. Ele sempre disse que Brasília não foi feita para ser uma grande capital. O Lucio a concebeu voltada para orientar o crescimento regional, estabelecer vetores de crescimento daqui para fora, e não ser a consequência do crescimento regional. Aí, está o equivoco".
Um dos projetistas da Catedral de Brasília (10 anos para ficar pronta), ex-secretário de Obras Públicas do DF na gestão José Aparecido de Oliveira ( 1985 a 1988), quando terminou a Praça dos Três Poderes e fez o Panteão da Pátria, Carlos Magalhães iniciou o processo de despoluição do lago Paranoá, mandou destruir muros para construir a ciclovia de 30 km de passeio no lago Sul, notificou 140 processos de loteamentos irregulares, denunciou empreiteiros e invasões. Passou 50 anos combatendo as invasões de áreas públicas, grilagens de terra e a especulação imobiliária. Agora, está indignado com o rumo que a cidade tomou.
" Brasília foi o maior canteiro de obras que o País já viu. Israel Pinheiro, engenheiro civil e primeiro presidente da Companhia Urbanizadora da Nova Capital-Novacap, gerenciou as obras projetadas por Oscar Niemeyer e Joaquim Cardozo. Aqui também estiveram Athos Bulcão (artista plástico que uniu a arte com a arquitetura) e Burle Max (paisagismo). Todos comprometidos com a nova capital.
Desolado com a desfiguração do projeto inicial, Magalhães afirma: "Sou descrente sobre o controle desse crescimento exacerbado. A continuar como foram as décadas passadas, de tudo o que foi concebido ficarão apenas duas coisas: o eixo monumental da rodoviária até o Congresso Nacional, que é a alma da cidade, e a unidade das superquadras. No segundo caso, porque a população que mora ali vai defender as edificações e não vai querer a construção de espigões em sua vizinhança. Temos atualmente distorções nas superquadras que surgem em novos bairros, como Sudoeste e Noroeste. O Setor Comercial Norte que nada mais é que um setor Comercial Sul tremendamente empobrecido e de péssima qualidade e, isso tudo contribui para enfraquecer a identidade do Plano Piloto e das superquadras em seu contexto original.
Então, fora desses dois pontos, tudo pode acontecer. Estão inventando, por exemplo, a expansão de setor Noroeste. Esta empulhação que destruirá o cerrado, e prejudicará a qualidade da água, e da vida na região. Estão dizendo que a região pode ter mais 40 mil habitantes e que cabe ainda mais. Querem chegar até a cem mil. O que estão fazendo com Brasília é um absurdo!".

A invasão de espaços públicos
degrada a cidade

O arquiteto,urbanista e doutor em História da Arquitetura, Andrey Rosenthal, aprofunda o retrato atual de Brasília: " Como reconheceu a própria Unesco, é uma cidade nova e viva do século XX, onde podem ser encontrados todos os problemas do mundo contemporâneo e das grandes metrópoles internacionais. A poluição, a pilhagem, as guerras e o turismo descontrolado que tem comprometido a preservação de boa parte dos cerca de cento e setenta bens patrimoniais da humanidade".
Tombada por aquele órgão da ONU, em 07 de dezembro de 1987 como Patrimônio Histórico e Cultural da Humanidade, a cidade teve seu plano original subvertido por uma série de irregularidades como aponta Andrey: " Em Brasília, o que grassa – e realmente compromete as suas qualidades excepcionais – é a barbárie da terra de ninguém, caracterizada pela apropriação indevida dos espaços públicos; pela ocupação ilegal da cidade e de seu entorno; pela grilagem deslavada de terras federais; pelo planejamento (quando existe) indigente e interesseiro; pela destruição e/ou desmonte das diferentes redes de serviços públicos; pelo antidemocrático e clientelista sistema de administrações regionais; pela criação criminosa de miseráveis currais eleitorais e pela alimentação de um "sonho" de um salvador messiânico (que tudo pode ou poderá resolver). Frente a este quadro, a luta pela preservação da Brasília, deve ser renovada a cada dia nas próximas décadas. Mas há que se ter clareza de que a cidade patrimônio da humanidade só será, efetivamente, preservada, quando uma nova cultura institucional e democrática for instalada".
As ilegalidades cometidas em Brasília já foram assunto de um relatório feito por especialistas ligados à Unesco que visitaram a região em 2001. O urbanista holandês Herman Hooff e o arquiteto argentino Alfredo Conti produziram uma lista de recomendações para tentar preservar o Plano Piloto. No entanto, pouca coisa mudou na última década e a maioria das observações foi ignorada.

Alerta sobre a desfiguração
do projeto original

O relatório de Conti e Hooff adverte: "As mudanças que ocorreram na cidade e em suas vizinhanças alteraram parte do seu conceito original, mas, até hoje, não a ponto de deixá-la inelegível para o status de patrimônio mundial", diz um trecho do documento. "Entretanto, algumas mudanças já tiveram impactos negativos e, se mais intervenções indesejáveis ocorrerem, o resultado poderia ser a perda das características marcantes que fazem de Brasília uma cidade única."
As "intervenções indesejáveis" dentro da área tombada seguem firmes. Uma das orientações do relatório dizia respeito à melhoria do sistema de transporte público para "desencorajar o acesso de carros à área governamental e ao centro da cidade". Hoje, a Esplanada dos Ministérios e a região central são os locais que sofrem com constantes engarrafamentos. Estacionar ali é uma loteria nos dias úteis. As promessas de construção de vagas subterrâneas não saíram do papel.
Na área habitacional, os especialistas r

ecomendaram que "os conjuntos residenciais permanentes à beira do lago fossem banidos". Mas eles crescem a olhos vistos e ninguém aparece para resolver a ilegalidade. Apesar desses problemas, a avaliação de especialistas é de que não há risco de a cidade perder o título de Patrimônio Mundial.

A visão dos construtores
De outro lado, apostando que os erros cometidos não se repetirão, está outro morador antigo da cidade, Luiz Carlos Ferreira, vice-presidente do Sinduscon – DF. Engenheiro civil, 53 anos em Brasília, ele justifica a situação à revista O Empreiteiro: "Quando cheguei aqui, a cidade tinha dois habitantes por km², na proximidade, havia três fazendas e mais nada. Só que a capital atraiu emprego de qualidade, teve um crescimento de alta intensidade e desordenado. Houve o afluxo de pessoas do Brasil todo. O que antes era dirigido para São Paulo, agora vem para Brasília. Houve oferta de espaço de moradia grátis, oferta de emprego, o que gerou desordem em termos de quantidade e qualidade".
Para ele, " a cidade está adquirindo um ritmo. Há alguns anos 30% do que era produzido era para custeio e 70% procediam da União. Em 16 anos, a situação se inverteu. A economia local está gerando 70% de sua riqueza e apenas 30% vêm da União.
Ao contrário do que dizem os saudosistas, a descaracterização não vai acontecer já que dentro do Plano Piloto as áreas foram tombadas, e ali não se pode mexer. Agora, os outros setores, próximos ao Plano Piloto, esses foram legítima e corretamente ocupados, dentro de planificação correta".
O engenheiro calcula que Brasília nos próximos 50 anos pode chegar a ter dez milhões de habitantes e pode fundir-se economicamente, com Goiânia, outra capital com crescimento vertiginoso nas duas últimas décadas e também uma cidade planejada. Luiz Carlos faz a conta: " O entorno da cidade tem hoje 1,5 milhão de habitantes, mais 2,5 milhões do Distrito Federal. Só aí são quatro milhões de pessoas. Com o crescimento, pode chegar a dez milhões e ter uma integração com a economia de Goiânia. Em duas décadas, a região será o segundo maior polo consumidor do País. A população vai descer do norte e nordeste e o deslocamento será sediado nas metrópoles da região central do Brasil. Haverá maior densidade demográfica como desdobramento dessa interiorização".
O engenheiro não acredita que o futuro trará mais problemas: "A descaracterização do Plano Piloto não vai acontecer. Existe o tombamento e leis que impedem a massificação. Já fora dessa área deve acontecer. A tendência será a verticalização dos assentamentos até aqui horizontais com as casas espalhadas. E as cidades satélites vão desenvolver economias próprias. Hoje, por exemplo, muitas já não são cidades – dormitório como há duas décadas".
Segundo Luiz Carlos, o Sinduscon do Distrito Federal vem atuando para formular propostas com o foco na preservação e correção de iniciativas do passado. Na questão da mobilidade urbana ele cita: " Quando se consegue fazer adequações, é possível corrigir o mau passado, algumas inconveniências e o desconforto. Corrigindo isso, será possível gerar melhores condições para o futuro".
Carlos Magalhães acredita que não é tão fácil assim, e aponta: " A gente tem que fazer o trabalho perto do trabalhador. Colocar a medicina e a escola perto da população. E não fazer metrô para trazer o pessoal para o centro da cidade. Tem que dar condições de vida perto de onde a pessoa mora. E isso não está nos planos dos especuladores. A organização urbana precisa ser convidativa para o cidadão e o futuro não promete isso".
Ex-diretor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília (UNB), com seis livros publicados sobre a cidade, Andrey Rosenthal aprofunda a questão: " Lucio Costa imaginou a cidade distinta de todas as demais.
Para ele, toda boa arquitetura é capaz de qualificar espaços urbanos. E boa arquitetura tem caráter apropriado e composição correta. No projeto de Brasília a concepção dele foi sempre fazer valer o critério da caracterização programática e da qualidade do espaço projetado e, numa determinada circunstância político-social e num contexto histórico preciso, tentar resolver a "contradição fundamental" dos desejos individuais frente aos coletivos.
Só que com a industrialização promovida por JK, o cenário começou a mudar. O emprego nas grandes cidades aumentou, as pessoas passaram a migrar e a economia cresceu. O crescimento veio acompanhado de investimento governamental em estradas, visando à interiorização do "progresso" – o que envolvia a construção de Brasília. No fim dos séculos 19 e 20, o processo de urbanização começou com a construção e inauguração de Belo Horizonte, em 1897. Em seguida, foi reforçado em 1937 pela construção de Goiânia. "

A criatura subverteu o criador
A história da construção de Brasília começou com uma antiga ideia do Marquês de Pombal, em meados do século XVIII, que foi retomada pelos Inconfidentes e reforçada após a chegada da corte portuguesa ao Rio de Janeiro em 1808, quando aquela cidade era a capital do Brasil.
Um folheto anônimo de 1822 foi a primeira publicação. Setenta anos depois, a primeira Constituição da República, fixou legalmente em 1891, a região onde deveria ser instalada a futura capital. Mas, só no século seguinte, com a eleição de Juscelino Kubitschek, em 1956, é que foi iniciada a construção da cidade que ficou pronta em três anos e meio. O conjunto da obra foi construído pelos trabalhadores braçais, vindos principalmente do nordeste, que rapidamente passaram a ser conhecidos como "candangos".
Lúcio Costa planejou Brasília para ser um polo irradiador a partir do qual o desenvolvimento fosse sendo direcionado para a região central do País. Oscar Niemeyer e outros profissionais foram construindo a cidade de acordo com a concepção proposta. Ao longo de vinte e três itens, Lucio Costa explicou sua invenção. O risco original, a adaptação topográfica, a técnica rodoviária, a disposição do programa, o cruzamento dos eixos, a plataforma rodoviária, a rede geral de tráfego, a integração dos setores, o eixo monumental, o centro de diversões da cidade, a faixa rodoviária residencial, as superquadras e a cidade parque. Cada elemento de composição, disse ele: "concebido segundo a natureza peculiar da respectiva função, resultando daí a harmonia de exigências de aparência contraditória".
O plano piloto foi planejad

o para ter no máximo 500 mil habitantes no ano 2000. Só que deu errado. O projeto acabou justamente quando a cidade começou a ser habitada por políticos, técnicos e funcionários públicos, a partir de 21 de abril de 1960. A partir dali, Brasília tornou-se também ponto de atração dos desfavorecidos da região centro-oeste, atraídos pelas promessas de políticos de que ali encontrariam terra grátis, trabalho fácil e prosperidade. Assim, Brasília chegou aos 51 anos com mais de dois milhões e meio de habitantes, sem contar o entorno, as chamadas cidades satélites. (Ver box).
O arquiteto Oscar Niemeyer, ao completar 103 anos, em 15 de dezembro passado, não escondeu sua decepção com o rumo tomado por sua criatura quando falou com a imprensa. Ele lembrou: "Nós encontramos um local livre, vazio. Vivíamos naquela época como uma grande família, sem preconceitos e desigualdades. Brasília surgiu como uma flor do deserto, dentro das áreas e escalas que seu urbanista criou, vestida com as fantasias de minha arquitetura. E o velho cerrado cobriu-se de prédios e de gente, de ruído, tristezas e alegrias. Porém, uma vez inaugurada vieram os homens do dinheiro, e tudo se modificou: a vaidade além do individualismo mais detestável se fizeram presentes. E fomos confrontados com a realidade. A cidade que construímos naquela época foi projetada para uma população de 500 mil pessoas. Hoje, vivem nela 2,5 milhões de habitantes. Isso não significa que Brasília é um sonho arruinado. Entretanto, os sonhos devem dar lugar à realidade mais cedo ou mais tarde. E os problemas que apareceram só podem ser resolvidos quando há esforço cotidiano dos planejadores urbanísticos e dos políticos para trabalhar e ir melhorando as coisas, passo a passo".

Brasília em 2050
Hoje, a cidade é desafiada pelo crescimento populacional, tráfego caótico de carros e pelo contraste das cidades satélites que ficam fora de Brasília e abrigam a maior parte de seus trabalhadores.
Diante do problema a ser vencido, foi organizado pela Isocarp o Seminário Internacional – Brasília Metropolitana 2050: Preservação e Desenvolvimento, com o objetivo de indicar soluções para o futuro.
A Isocarp é uma organização não-governamental, reconhecida pela Organização das Nações Unidas (ONU), com um estatuto consultivo junto a UNESCO, que reúne planejadores altamente qualificados em uma rede internacional com membros em mais de 70 países. O objetivo do seminário foi gerar recomendações urbanísticas, para servir de base para o desenho de estratégias para Brasília e sua área metropolitana.
No seminário, como relator das apresentações, Andrey Rosenthal concordou com as palestras que apontaram para as soluções desejadas para a cidade nos próximos 50 anos: "Do ponto de vista de gestão é fundamental considerar a integração entre os diferentes agentes, sobretudo, nos diferentes níveis de governo, local, regional e nacional. O que passa pela definição clara de atribuições. Sendo assim, é fundamental fomentar o processo de gestão metropolitana, garantindo ao processo legitimidade politica operacional e institucional. Por fim, referindo-se especificamente ao caso de Brasília é necessário equilibrar as condições de vida em todo o território da aglomeração metropolitana. Dotar a periferia de espaços qualificados e serviços condizentes. Ou seja, levar a qualidade existente no Plano Piloto para toda a metrópole" .

Fonte: Estadão


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