As tragédias acontecem, assinala uma velha frase acaciana. Mas acrescentaríamos: acontecem, em especial, quando o chamado “processo civilizatório” joga para debaixo do tapete a importância do respeito que o homem deve manter em relação às possibilidades dos fenômenos da natureza.
Ocupação predatória das áreas urbanas e rurais; carência de obras de drenagem em locais de risco e às margens até de rodovias, de modo a evitar que a água sature o solo, por natureza, escorregadios; falta de obras de contenção ou obras de contenção realizadas sem acompanhamento geotécnico satisfatório; falta de fiscalização e de controle nas encostas, sobretudo nas cidades, onde elas são continuamente uma espécie de bomba-relógio prestes a ser ativada no ciclo das chuvas; e absoluta negligência no monitoramento dos cursos d´água caudalosos, até mesmo quando se aproxima a época das enchentes.
Esse quadro ganha relevo no atual momento em que o Estado de Santa Catarina, sobretudo suas tradicionais e importantes cidades, dentre elas Itajaí e Blumenau, são traumatizadas, com suas populações, pela tragédia das enchentes do rio Itajaí-Açu e seus afluentes. Elas causaram quase uma centena de mortos, milhares de desabrigados e prejuízos materiais que ainda não puderam ser totalmente calculados.
Não é de hoje que fatos dessa natureza acontecem na região. Números antigos desta revista registram as tragédias que ali ocorreram em 1974, quando morreram 199 pessoas e 65 mil ficaram desabrigadas; e em 1983 e em 1984, com a morte de 140 pessoas. Imagens da época dão a proporção da tragédia ocorrida em Blumenau.
Na região, até mesmo uma ponte histórica, construída em 1930 pelo engenheiro Emílio Baumgart ligando as cidades de Herval do Oeste e Joaçaba, no Vale do Rio do Peixe, foi levada pelas enchentes. A obra, com vão central de 68 m, considerada à época recorde mundial de vão em viga reta, e na qual se adotou pioneiramente no País a técnica dos balanços sucessivos, não suportou a fúria das águas.
A situação, em Santa Catarina, com as recentes cheias, chegou ao colapso: os portos de Navegantes e Itajaí ficaram paralisados e, somente neste, os prejuízos acumulados foram superiores a R$ 130 milhões; a forte indústria cerâmica regional teve de colocar 8,1 mil funcionários em férias coletivas, registrando uma perda de produção diária de 270 mil m², correspondentes a R$ 4,1 milhões.
Em todo o Estado houve perdas humanas irrecuperáveis e danos imensos a sua infra-estrutura rodoviária e de energia. A explosão ocasionada em um ponto do gasoduto Bolívia-Brasil, atribuído ao desmoronamento de encostas, interrompeu o fornecimento de gás à região. O reflexos da tragédia se espraiaram para as áreas de saneamento, saúde e habitação, nas cidades e no campo.
Em meio às informações desencontradas sobre medidas preventivas que deixaram de ser acionadas, constata-se que o sistema de monitoramento de cheias da bacia do Itajaí é absolutamente obsoleto. Não serve para identificar, em tempo real, a elevação do nível dos rios. Melhor seria que tal monitoramento estivesse sendo feito pelo método primário de medição, com a colocação de estacas apontando os níveis da elevação das águas. Em época de “revolução tecnológica”, a prevenção, mediante sistema técnico considerado avançado, não funcionou.
Além disso, a imprensa tem registrado que dos 14 municípios catarinenses em que até o dia 25 deste mês (novembro) houve mortos por causa das cheias, apenas Itajaí havia assinado convênio com a União, no governo Lula da Silva, para prevenir desastres mediante controle das enchentes.
Portanto, aos fenômenos da natureza somaram-se as negligências e irresponsabilidades oficiais nas três instâncias de governo, ao longo de décadas. Esqueceu-se que desde os primórdios da civilização, o homem já construía barragens para conter as cheias.
Fonte: Estadão