O setor elétrico brasileiro vive um momento de imprevisibilidade após o cancelamento do Leilão de Reserva de Capacidade de 2025. Previsto para garantir o suprimento de energia em momentos de pico de demanda, o certame foi revogado pelo Ministério de Minas e Energia (MME) em 3 de abril, em meio a questões judiciais. A decisão inquietou o mercado, que aguardava a contratação de nova capacidade de geração para o Sistema Interligado Nacional (SIN).
No início de abril, o setor elétrico brasileiro foi surpreendido com o cancelamento do Leilão de Reserva de Capacidade na forma de Potência Elétrica de 2025 (LRCAP 2025), previsto para ocorrer em 30 de abril. A decisão foi formalizada pelo MME por meio da Portaria Normativa nº 106. Com isso, a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) declarou extinto o processo de instrução do LRCAP 2025, apesar da realização da consulta pública, uma vez que a base legal para a efetivação do leilão foi superada com a revogação das portarias que subsidiavam o certame.
Consultado pela reportagem, o MME afirmou que a decisão foi, na verdade, uma resposta à intensa judicialização do processo. “A realização do leilão ficou comprometida por disputas judiciais em torno do certame. Por prudência e para afastar riscos jurídicos, o MME teve de cancelá-lo, priorizando a publicação de novas diretrizes e a abertura de nova consulta pública”, informou o órgão em nota. “Ciente da relevância do certame para a segurança do suprimento, sobretudo no contexto da transição energética, o MME trabalha para divulgar as novas regras com brevidade, de modo a viabilizar a realização do leilão de reserva no primeiro trimestre de 2026”, concluiu.
O LRCAP 2025 tinha como objetivo garantir lastro de potência firme para o SIN, assegurando que o País tivesse energia disponível nos momentos de maior demanda. O modelo de leilão de capacidade foi introduzido em 2021, quando o Brasil enfrentava riscos de crise hídrica e a diversificação da matriz energética se tornava urgente. A edição de 2021 resultou na contratação de termelétricas a gás natural, reforçando o parque gerador com usinas despacháveis.
O leilão deste ano, contudo, esteve cercado de polêmicas. A principal delas era a introdução do chamado “Fator A” na Portaria Normativa nº 100/2025. Esse critério regulatório que privilegiava usinas com maior flexibilidade operacional, como as de ciclo aberto, em detrimento de projetos de ciclo combinado, gerou insatisfação. A falta de uma consulta pública prévia para discutir a nova regra levou empresas e associações a recorrerem à Justiça, que acabou por suspender a portaria e, consequentemente, inviabilizar o certame. Segundo o MME, “uma consulta pública deve ser aberta sobre o conjunto de diretrizes e da sistemática, incluindo o fator “A”, fórmula destinada a estimular a contratação de menor custo para o consumidor”.
Para o ex-diretor da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) e ex-presidente da Associação Brasileira dos Comercializadores de Energia (Abraceel), Edvaldo Santana, a falta de clareza sobre os custos e a ausência de um planejamento integrado poderiam levar a contratações desnecessárias e onerosas para o consumidor. Ele defende que um leilão dessa magnitude não poderia ocorrer sem um planejamento integrado e com regras que geram insegurança jurídica.
Para o especialista, se o fluxo tivesse seguido as etapas com base técnica, a começar pela identificação da necessidade da reserva de potência pelo ONS – que repassa a demanda para a Aneel, que, por sua vez, dialoga com o poder concedente para desenhar o certame e estruturar sua realização – o mercado estaria blindado contra pressões políticas. “A Aneel também é vulnerável a todo tipo de pressão, mas as discussões lá seriam mais técnicas. Se a agência tivesse que fazer uma equação para o fator ‘A’ discutiria antes, em uma pré-consulta pública”, afirmou durante o evento MinutoMega Talks.
Na visão de Santana essas atitudes têm tirado a credibilidade do setor. “Há três anos tenho insistido que a degradação da confiabilidade não recebeu a devida atenção. E o Operador Nacional do Sistema, no seu plano de operação energética para o ciclo 2025-2029, mostra isso com clareza. A probabilidade de perda ou falta de potência é de 12% em 2026, quando o limite é 5%. E vai para absurdos 43%, 73% e 90% em 2027, 2028 e 2029, respectivamente”, esclareceu ao jornal Valor. “Não parece, mas o tempo já é exíguo para a solução do problema, que depende do leilão de reserva de capacidade e de uma participação mais efetiva da resposta da demanda”, concluiu.
Outros analistas destacam ainda a dificuldade de conciliar a expansão de fontes intermitentes, como solar e eólica, com a oferta de lastro firme, papel tradicionalmente cumprido por hidrelétricas e térmicas. O cancelamento, portanto, foi visto por muitos como um passo necessário para corrigir as falhas e garantir um processo mais justo. A Associação Brasileira de Grandes Consumidores de Energia (Abrace) elogiou a decisão de cancelar o leilão de reserva de capacidade, por conta da possibilidade de embates judiciais.
“A alteração do preço teto depois de todas diretrizes já definidas, inclusive o balanceamento do fator ‘A’, e sem que as térmicas mais caras que passaram a poder participar tivessem sido consideradas nos estudos anteriores, trouxe grandes incertezas e riscos quanto ao atendimento”, diz a nota da Abrace. “Esperamos que a consulta pública resulte em um certame competitivo, transparente, com contratação da energia mais barata e na quantidade que o sistema realmente necessita, tanto o elétrico quanto o de gás”, conclui a entidade.
Apesar da justificativa técnica, a medida repercutiu entre agentes do setor. Representantes da indústria eletrointensiva viram no adiamento um alívio momentâneo, já que a realização do leilão poderia resultar em aumento nos custos da energia. Por outro lado, investidores que aguardavam o certame para viabilizar projetos de geração avaliaram a decisão como um fator de incerteza regulatória.
A Associação Brasileira das Empresas Geradoras de Energia Elétrica (Abrage) considerou preocupante o cancelamento do LRCAP 2025, especialmente diante dos estudos da EPE e do ONS, que indicam a necessidade de contratação de recursos de potência para garantir o atendimento à carga e a segurança do sistema elétrico nos próximos anos. “As judicializações em torno desse processo acabam atrasando soluções fundamentais para o bom funcionamento do setor”, afirmou a entidade, em nota. Consultada, a EPE não quis se pronunciar sobre o tema.
Para a Abrage, seria essencial que o leilão ocorresse em 2025. “Há projetos hidrelétricos em estágio avançado de desenvolvimento que podem entrar em operação antes de 2030. São empreendimentos altamente competitivos e, do ponto de vista ambiental, sustentáveis.” A instituição foi além: “Para assegurar a confiabilidade do sistema a menores custos para os consumidores, a inserção de um produto hidrelétrico com entrega em 2029 se justifica, em complemento ao produto com entrega em 2030 já considerado pelo MME”.
Os desarranjos regulatórios e a falta de clareza nas regras do setor elétrico têm freado os planos de expansão da gigante chinesa SPIC no Brasil. A presidente da companhia, Adriana Waltrick, disse recentemente que, por enquanto, a empresa mantém em andamento apenas a construção de um parque eólico de 105 MW no Rio Grande do Norte, orçado em R$ 750 milhões e previsto para entrar em operação em 2026, que só foi viabilizado por uma parceria estratégica com a fabricante de turbinas Goldwind. “O setor está precisando de atenção, de governança, de clareza de regras, antes que o investidor se assuste e comece a não priorizar mais o País, que tem tantas oportunidades”, afirmou a executiva ao jornal O Estado de S.Paulo.
Tais episódios expõem um dilema da política energética brasileira: como garantir segurança de abastecimento em uma matriz cada vez mais renovável, mas dependente de soluções firmes para atender aos picos de demanda. Segundo analistas do setor, a expectativa é que o MME apresente ainda em 2025 uma nova modelagem para os leilões de potência, com critérios técnicos para evitar a contratação de capacidade desnecessária e, consequentemente, custos adicionais para os consumidores, que já pagam subsídios embutidos nas contas de energia.
Leilão de transmissão também causa polêmica
Diante da instabilidade no setor elétrico brasileiro, os leilões de transmissão de energia também enfrentam desafios. Os próximos certames, considerados vitais para o avanço dos investimentos no setor elétrico, têm gerado apreensão entre empresas interessadas. A preocupação central está na indefinição de quais projetos farão parte da versão final do edital. Marcado pela Aneel para 31 de outubro na B3 (Bolsa de São Paulo) o leilão movimentará R$ 7,6 bilhões em investimentos e prevê a construção e manutenção de 1.178 km de linhas de transmissão, subestações e seccionamentos em 13 Estados.
O principal ponto de tensão é a inclusão de cinco lotes de concessões originalmente obtidas pela MEZ Energia em 2020 nas regiões metropolitanas de São Paulo e Cuiabá, além de áreas do interior paulista e de Mato Grosso do Sul. A Aneel recomendou ao MME a caducidade dessas concessões por descumprimento de prazos, mas a empresa afirma que apenas um projeto está atrasado. Enquanto o Tribunal de Contas da União (TCU) avalia a versão definitiva do edital, especialistas alertam para o risco de judicialização. Os blocos da MEZ representam quase a metade do total de lotes oferecidos no novo leilão.
Dividido em 11 lotes, o pacote de concessões terá capacidade de transformação de 4.400 MW e desempenhará papel central no escoamento da energia renovável do Nordeste para o restante do País, em linha com as diretrizes do Plano Decenal de Expansão de Energia (PDE 2034), aprovado em abril pelo MME. O PDE projeta aportes de R$ 128,6 bilhões em transmissão ao longo da próxima década, consolidando o segmento como um dos eixos estratégicos da expansão da matriz elétrica brasileira. Apesar da expectativa de um leilão competitivo, em sintonia com os resultados positivos dos últimos cinco anos, incertezas regulatórias têm pesado sobre as empresas participantes do leilão.






