O trem de alta velocidade trouxe benefícios à Europa e ao Japão, mas os investimentos são altose o retorno não paga os custos da construção
Tatiana Bertolim
Na fria manhã de inverno, o painel eletrônico no alto do vagão marca, em vermelho, a velocidade: 301 km/h. Do lado de fora, casas e carros desaparecem rapidamente em meio à paisagem árida do trecho entre Barcelona e Zaragoza – única parada no trajeto de 621 km que liga a capital catalã a Madri. |
Inaugurado em fevereiro de 2008, o trem de alta velocidade que conecta as duas maiores cidades espanholas balançou em pouco tempo a ponte aérea que até então era a mais movimentada do mundo entre dois aeroportos: Barajas, em Madri, e El Prat, em Barcelona.
O AVE – como é batizado o serviço de trens de alta velocidade na Espanha – transportou 5,3 milhões de pessoas entre a capital do país e Barcelona nos 12 meses encerrados em fevereiro deste ano. O número equivale a 45,7% dos passageiros que fizeram esse percurso no período. As companhias aéreas, que antes reinavam quase absolutas, agora têm pouco mais da metade desse mercado.
É uma mudança significativa. Com taxa média de ocupação de 78%, o AVE conseguiu mexer com as tarifas e desafogar o tráfego aéreo entre as principais cidades do país. Agora, a menina dos olhos do governo espanhol é a interligação entre Barcelona e a fronteira com a França – incluindo a construção de um delicado trecho que vai passar sob a Sagrada Família, a famosa igreja projetada pelo arquiteto catalão Antoni Gaudí.
Em meio à maior crise econômica de sua história recente, a Espanha agarrou-se aos trens de alta velocidade para reaquecer o mercado interno. No ano passado, o primeiro-ministro espanhol, José Luis Rodríguez Zapatero, anunciou um plano de investimentos de € 17 bilhões em infraestrutura ferroviária e rodoviária, num regime de parceria público-privada. O AVE será o grande destinatário desses recursos.
Diante desse cenário, o trem de alta velocidade na Espanha parece um caso de sucesso retumbante. E pode-se dizer que realmente o é, do ponto de vista operacional. Entretanto, uma rápida olhada nas contas é o que basta para afirmar que o AVE está muito distante de recuperar o investimento feito até agora.
Difícil retorno de investimento
A unidade de negócios de alta velocidade e longa distância da Renfe, a companhia espanhola de trens, alcançou seu primeiro resultado positivo em 2010. Ainda assim, a cifra foi de modestos € 2,5 milhões e só foi alcançada devido a um pesado programa de redução de custos. O lucro veio a calhar, pois chegou no ano em que a União Europeia determinou o fim das subvenções públicas aos serviços ferroviários comerciais.
Rentabilidade e trens de alta velocidade nem sempre viajam juntos, já que os investimentos são altos e o retorno é lento. O TGV francês levou 16 anos para ter seu primeiro lucro, o que só ocorreu em1997. A divisão de viagens de longa distância e alta velocidade da operadora estatal SNCF contabilizou ganho operacional de € 535 milhões no ano passado.
“Não dá para olhar apenas se o projeto é economicamente rentável. É preciso levar em conta o que ele agrega para a sociedade”, afirma Iñaki Barrón, diretor de passageiros e do departamento de alta velocidade da União Internacional das Ferrovias (UIC).
Isso explica por que, até agora, a maior parte dos projetos de trens de alta velocidade implementados no mundo foi bancada com recursos estatais. Com exceção de Taiwan e do trecho que está sendo construído para conectar as redes espanhola e francesa, os demais investimentos foram feitos com dinheiro público. O modelo brasileiro também caminha nessa direção.
Com o objetivo de manter os custos sob controle e fazer o programa andar, o governo da Coreia do Sul criou uma agência própria, e com orçamento separado, para cuidar da implementação da primeira linha de alta velocidade no país, no início dos anos 90. A obra custou cerca de US$ 11 bilhões, o dobro do inicialmente previsto. A participação da iniciativa privada restringiu-se a 6% dos investimentos.
Também por isso alguns países optam por separar a empresa que detém a infraestrutura da que opera as linhas. França e Alemanha são exemplos de países que fizeram isso. “Falar em lucro numa empresa estatal é muito relativo. Os governos existem para atender as demandas da sociedade”, defende Barrón, que prestou consultoria à Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT).
A construção de trens de alta velocidade costuma trazer outros investimentos a reboque, pois acaba estimulando a construção de novas linhas de trem ou outros meios que facilitem o acesso dos passageiros à linha rápida.
Na França, onde o TGV completa 30 anos em 2011, o trem de alta velocidade tornou-se quase uma extensão do metrô. As linhas rápidas transportam, por dia, milhões de pessoas que vivem em uma cidade e trabalham em outra. O TGV francês conta com uma rede de 1,9 mil km – a maior da Europa. Em alguns trajetos, o trem foi tão bem-sucedido que praticamente acabou com os deslocamentos aéreos. É o caso do percurso entre Paris e Bruxelas. A própria Air France tem acordo com a SNCF – a companhia ferroviária francesa – para completar por trem a viagem de passageiros que vão à Bélgica.
China investe no TAV, mas enfrenta problemas
Pioneiro nessa tecnologia, o Japão apostou na Shinkansen como forma de solucionar os problemas de transporte em um país pequeno, populoso e de geografia desafiadora, onde o espaço para os carros é muito limitado. O sistema começou a ser implantado nos anos 60 e, com 2,4 mil km de linhas, durante muito tempo foi a maior rede de alta velocidade do mundo – até ser desbancado pela China.
A China tem investido em trens de alta velocidade como nenhum outro país. Estão previstos mais de US$ 100 bilhões somente neste ano. Com a inauguração, em junho, da rota de 1.318 km entre Pequim e Xangai, a rede chinesa já soma quase 10 mil km – uma marca impressionante levando-se em conta que o sistema foi inaugurado em 2007.
E a China tem pressa. Muitas das linhas estão sendo abertas antes do previsto, já que o governo enxerga nesse meio uma forma de encurtar as distâncias para o transporte de cargas e mercadorias no gigantesco território chinês e, assim, ganhar ainda mais produtividade econômica.
Apesar disso, o projeto não tem sido alheio a críticas e desconfianças. Suspeitas de corrupção derrubaram o ministro de Ferrovias, Liu Zhijun, em fevereiro deste ano, enquanto a velocidade da construção desperta, entre os concorrentes internacionais, algumas dúvidas sobre a qualidade das obras. Essa suspeita acabou se fortalecendo quando a linha Pequim-Xangai começou a operar a 300 km/h — a velocidade inicial anunciada seria de 350 km/h.
Depois, um acidente no final de julho envolvendo dois trens de alta velocidade em um viaduto, a desconfiança aumentou ainda mais. Na ocasião, 40 pessoas morreram. O problema do TAV da China fez diminuir as possibilidades do país exportar a tecnologia – inclusive para o Brasil. Em outro vertente, chineses reclamam que o serviço é muito caro – depois de muita reclamação, o governo se rendeu e reduziu os preços da passagem.
O TAV japonês tem 47 anos sem nunca ter tido um acidente fatal.
Sistema de Trem de Alta Velocidade (TAV) pelo mundo | |||||
País | Em operação | Em construção (km) | Planejada (km) | ||
Ano | Extensão (km) | ||||
Inicial | Atual | ||||
Coreia do Sul | 2004 | 300 | 300 | 82 | |
Japão | 1964 | 515 | 2.387 | 590 | 583 |
França | 1981 | 471 | 1.872 | 299 | 2.616 |
Itália | 1981 | 224 | 744 | 132 | 395 |
Alemanha | 1988 | 327 | 1.285 | 378 | 670 |
Espanha | 1992 | 471 | 1.599 | 2.219 | 1.702 |
Bélgica | 1997 | 72 | 137 | 72 | – |
Reino Unido | 2003 | 74 | 113 | – | – |
China | 2003 | 442 | 10.000 | 3.404 | 20.000 |
Taiwan | 2007 | 345 | 345 | – | – |
Holanda | 2008 | 120 | 120 | – | – |
Turquia | 2009 | 235 | 235 | – | – |
Brasil | – | – | – | – | 518 |
Índia | – | – | – | – | 495 |
Irã | – | – | – | – | 475 |
Marrocos | – | – | – | – | 680 |
Portugal | – | – | – | 1.006 | – |
Arábia Saudita | – | – | – | – | 550 |