Portugal está retomando uma ideia conhecida e simples, mas que pode ser uma solução para armazenamento de energia renovável: ‘baterias de água’ ou pequenas centrais hidrelétricas que são construídas próximas de um complexo solar ou eólico e geram energia quando falta sol ou vento. As duas primeiras usinas desse tipo já estão operando no país.
Batizado de Complexo do Tâmega, o projeto envolve a construção de três usinas – Gouvães, Daivões e Alto Tâmega, que serão instaladas em um vale rochoso que cerca o Rio Tâmega, um afluente do Douro localizado na região norte de Portugal, perto do Porto. Das três usinas, duas já estão operando. A última deve ser inaugurada em março.
Juntas, as três usinas terão capacidade instalada de 1.158 MW, o que representará um aumento de 6% da potência elétrica total instalada no país. O empreendimento é da espanhola Iberdrola e consumiu € 1,5 bilhão (aproximadamente R$ 8 bilhões) de investimento.
O complexo será capaz de produzir 1.766 GWh por ano, suficiente para suprir as necessidades energéticas de 440 mil residências. Além disso, terá capacidade de armazenar água suficiente para gerar 40 milhões de kWh, equivalente à energia consumida por 11 milhões de pessoas durante 24 horas.
Conhecidas como usinas hidrelétricas reversíveis (UHR), essas centrais possuem um mecanismo para bombear a água do reservatório inferior para o superior. Associadas com outras fontes geradoras (de preferência, renováveis) tais usinas são também chamadas de ‘baterias de água’ porque sua função acaba sendo semelhante à de uma bateria comum, ou seja, atuam como acumuladores de energia.
Dois reservatórios de água são construídos em níveis diferentes. Ao longo do dia, com o sol carregando os painéis solares, parte da energia gerada é utilizada para bombear água do reservatório de baixo para o superior. À noite, quando ocorre o aumento da demanda por energia, o processo se inverte: a água acumulada no reservatório de cima é liberada através das turbinas, que produzem energia.
Com a geração eólica ocorre processo semelhante: nos períodos de maior intensidade de vento, as bombas enchem o reservatório superior– que é esvaziado quando a geração eólica cai ou quando a demanda por eletricidade sobe.
Esse sistema tem sido a forma mais sustentável de aproveitar o pico de produção de energias renováveis. Quando há muito sol, os painéis solares (ou as turbinas eólicas, quando o vento está forte) produzem muito mais eletricidade do que pode ser consumida. Uma vez que as redes elétricas não podem guardar esse excesso, a eletricidade não utilizada é perdida. No caso da combinação com as hidrelétricas reversíveis, ela acaba sendo armazenada de uma outra forma.
Hidrelétricas reversíveis são uma tendência global
A capacidade instalada de UHR em operação no mundo atingiu, em 2021, cerca de 160 GW, conforme relatório publicado pela International Hydropower Association. Os EUA detêm a maior capacidade instalada de geração a partir de UHR, com 31 GW. A Bath County Pumped Storage Station nos EUA é a maior UHR em operação no mundo, com 3 GW de potência instalada.
Segundo a Agência Internacional de Energia (AIE), as hidrelétricas reversíveis respondem por 90% do armazenamento de energia no mundo. Apesar de retomar seu protagonismo em tempos recentes, essas usinas existem há quase um século. Muitas delas foram construídas na Europa nos anos 1960, para armazenar a eletricidade excedente de usinas nucleares.
Mais recentemente, a China vem assumindo a liderança desse tipo de usina, com diversos projetos em construção. A partir do final da década de 70, o país efetuou pesado investimento na construção de hidrelétricas. Nesse período o crescimento do setor foi da ordem de 2.000%. Atualmente, a China é uma das maiores referências em geração a partir de usinas reversíveis – possui mais de 30 UHR em operação com potência instalada superior a 30 GW. Há três anos, lançou um ambicioso plano que prevê investimentos para dobrar sua capacidade neste tipo de usina para 62 GW até 2025, dobrando novamente (120 GW) até 2030.
Em função da elevada demanda energética e da limitação de recursos, o Japão apostou na diversificação da matriz energética, utilizando como base as usinas hidrelétricas e nucleares. Uma característica peculiar do país é a integração das usinas nucleares com UHR em diversos projetos. Com o desastre de Fukushima, o investimento em energia nuclear foi paralisado, e o país se voltou para energias renováveis. Em 2020, a potência instalada em usinas hidrelétricas convencionais no Japão correspondia a 50 GW, sendo mais de metade, cerca de 30 GW, proveniente de UHR (46 usinas em operação).
A Austrália também voltou suas atenções para as usinas reversíveis nos últimos anos. Em 2019, o país lançou um megaprojeto chamado Snowy 2.0, com capacidade de 2,2 GW, para ligar duas barragens por um túnel subterrâneo de 27 km.
Na Europa, a Iberdrola possui a maior usina hidrelétrica reversível do continente. Localizado na bacia do rio Júcar, no município de Cortes de Pallás, em Valência, na Espanha, o complexo hidrelétrico Cortes-La Muela conta com capacidade de turbina de 1.762 MW e com 1.293 MW no reservatório bombeado. O investimento total do projeto consumiu € 1,2 bilhão (cerca de R$ 6,5 bilhões).
Cortes-La Muela teve iniciada sua construção em 1983, quando foi instalada a barragem de Cortes, com uma altura de 116 m. O reservatório superior ocupa mais de 1 milhão de m2 e tem uma reserva de energia de 24 GWh, sendo capaz de atender o consumo diário de 6,75 milhões de pessoas. Em 2015, o complexo foi ampliado com a construção da usina hidrelétrica La Muela II. Com capacidade instalada de 880 MW em turbina e 744 MW em bombeamento, a nova instalação fez do complexo o de maior potência instalada da Europa, com mais de 1.800 MW em turbina e 1.293 MW em bombeamento.
Nas duas hidrelétricas, o reservatório inferior é ligado ao superior por meio de dois dutos (de 4,8 m e 5,45 m) que fazem a ponte no desnível de 500 m. Essa estações de bombeamento são sistemas de armazenamento de eletricidade em massa e permitem gerenciar de forma eficiente a cobertura nos horários de pico. Em momentos em que há excesso de energia no sistema , em vez de desligar as instalações da rede, é possível utilizar esse excesso de energia para bombear água e armazená-la em um reservatório superior.
Segundo a Iberdrola, no caso da usina Cortes-La Muela, com o que ela produz em um ano é capaz de suprir a demanda de eletricidade anual de quase 400 mil casas, evitando a emissão anual de mais de 2 milhões t de CO2.
Mas nem tudo é tão simples. Apesar de ser uma tecnologia centenária e de eficácia comprovada, as usinas hidrelétricas reversíveis demandam grandes áreas –com topografia e localizações favoráveis –e precisam mitigar impactos socioambientais que projetos desse porte geram– e exigindo investimentos elevados. As estimativas mais recentes para um projeto australiano revelaram um custo final de US$ 12 bilhões (aproximadamente R$ 59 bilhões) – mas é preciso avaliar as peculiaridades do projeto em si.
“Qualquer um que tem um projeto de hidrelétrica reversível está bem servido. Posso garantir que todos estão ganhando dinheiro”, afirmou ao Financial Times Malcolm Turnbull, presidente da International Hydropower Association (IHA); “o problema é o custo de se construir novas centrais reversíveis”. Já Diego Díaz Pilas, chefe global de empreendimentos e tecnologia da Iberdrola, revelou ao jornal que não é necessário nada extravagante para as novas ‘baterias de água’, evitando custos excessivos. “Só precisamos de licenças mais rápidas do governo e estabilidade no marco regulatório do país. Na verdade, é engraçado estarmos aqui discutindo uma tecnologia que tem quase 100 anos, mas que volta a ser tão importante para o futuro”, salientou.
Brasil tem potencial para instalação de milhares de usinas reversíveis
O estudo “Mapping the potential for pumped storage using existing lower reservoirs”, publicado Journal of Energy Storage, da editora Elsevier, realizado por pesquisadores do Grupo de Estudos do Setor Elétrico (Gesel), da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), da Universidade Federal de Alfenas e de outros três países, mapeou a existência de 5.600 projetos potenciais viáveis de usinas reversíveis (Pumped Hydropower Storage – PHS, em inglês) no Brasil.
O modelo computacional utilizado pelos pesquisadores chegou a 145.000 projetos de usinas reversíveis em torno de barragens existentes, que foram reduzidos para 5.600 projetos otimizados. A metodologia analisou os custos de energia, o tempo de descarga do reservatório superior e a possível viabilidade econômica dos projetos.
Os cinco reservatórios com o maior número de projetos tecnicamente viáveis são Segredo e Foz do Areia, no Rio Iguaçu (PR), Foz do Chapecó e Ita, no Rio Uruguai (SC e RS) e Furnas no Rio Grande (MG). Do total de projetos viáveis, 43% estão na região Sul, 46% nas regiões Sudeste e Centro-Oeste e 11% nas regiões Norte e Nordeste.
Segundo os pesquisadores, as usinas reversíveis construídas ao lado dos reservatórios existentes oferecem serviços de gestão de água e armazenamento de energia sem necessitar de ocupar novas e extensas áreas associadas às barragens hidrelétricas convencionais. Isso as tornam uma opção importante para o desenvolvimento sustentável, tanto para a mitigação como para a adaptação às alterações climáticas.
Contudo, ainda falta uma regulamentação específica para esses projetos, como destaca Roberto Brandão, pesquisador sênior do Gesel. “O estudo está no nível de inventário, não de projeto. Como não há regulação para contratar reversíveis, não há ainda projetos prontos para implementação”, esclarece.
Já a Empresa de Pesquisa Energética (EPE) publicou em 2019 estudos de pré-inventário para identificação de locais potenciais para a instalação de usinas reversíveis no Brasil, “um marco importante na busca por alternativas de armazenamento de energia e expansão da fonte hidrelétrica no País”, como destaca a assessora da diretoria de Estudo de Energia Elétrica da EPE, Renata Nogueira Francisco de Carvalho.
Seguindo ela, esse estudo teve como um foco especial o Estado do Rio de Janeiro, escolhido como projeto piloto. A EPE identificou 15 locais potenciais para a instalação dessas usinas, totalizando 21.109 MW de capacidade instalada, indicando amplo potencial para inserção desta tecnologia no País. “Utilizando uma metodologia pioneira no Brasil, que incorpora o uso de modelos digitais de elevação e dados georreferenciados, traduzido na ferramenta GeoUHR, a EPE deu um importante passo na identificação sistemática de sítios favoráveis às UHR, destacando-se pela abordagem tecnológica avançada na análise de potenciais locais. O estado do Rio de Janeiro foi selecionado como projeto piloto para definição dos aspectos metodológicos, visando a posterior avaliação em outras regiões”, explica Carvalho.
Ainda segundo a especialista, esse estudos representam um passo significativo na atualização dos levantamentos realizados nas décadas de 1970 e 1980 pela Eletrobras/CESP, refletindo as mudanças territoriais e ambientais, além de considerar novas variáveis na avaliação de áreas protegidas. “A publicação do estudo sobre o tema gerou grande interesse e diálogo entre diversos stakeholders, incluindo universidades, empresas privadas, consultorias e órgãos reguladores, impulsionando o desenvolvimento de projetos de P&D em parceria com a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel)”, conclui Renata Carvalho.
(BOX) Vale observar que a primeira UHR do mundo em operação comercial foi a Usina Elevatória de Pedreira, situada na capital paulista. Inaugurada em 1939, já com a possibilidade de funcionamento tanto como geradora de energia, tanto como usina de bombeamento, possui hoje oito turbinas, sendo que sete são reversíveis. Com capacidade de bombeamento de 385m3 /s, ela bombeia a água do canal do Rio Pinheiros para a reservatório da represa Billings, elevando a água em cerca de 25 m.