Estranhos frutos, as enchentes em Cunha

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Joás Ferreira*

Acordei no dia 1o de janeiro ali pelas 5h. Além da chuva, que insistia em cair, o que me despertou foram vozes confusas que vinham do lado de fora da casa e pareciam demonstrar espanto com alguma coisa.
Abri a janela e, rapidamente, pude entender o porquê de tanto alvoroço: estávamos praticamente ilhados, com água por todos os lados. A nossa casa, felizmente, ficava num ponto alto do terreno em que a enchente não conseguiria atingir. Entretanto, era possível avistar as casas de vizinhos, já semi-submersas.
O irônico é que nada se podia fazer, a não ser tentar saber, aos gritos e com sinais, se as pessoas estavam bem. Em plena era da comunicação, em que proliferam os satélites, internet e sofisticados telefones celulares, lá estávamos usando os mais primitivos dos instrumentos de comunicação: a voz e os gestos.
O rio Paraibuna, encorpado com as águas que desciam das montanhas, tornou-se caudaloso e tomou conta de toda a baixada. O modesto restaurante de comida caipira, o pequeno comércio, o rústico campo de futebol e algumas casas de moradia foram tomados pela enxurrada. Numa dessas casas, uma família ficou isolada no segundo andar da construção, já que o pavimento inferior fora totalmente invadido pelas águas.
Um grande lago se formou no que seria o centrinho do bairro rural da Paraibuna, que fica há cerca de 20 km de Cunha (SP), cidade que, junto com São Luiz do Paraitinga, foi uma das mais castigadas pelas recentes chuvas. O rio, que normalmente tem águas mansas e límpidas, ficou barrento e o seu nível subiu mais de um metro além da ponte de madeira.
Diante daquele cenário, chamou-me a atenção um movimento inusitado na copa de uma árvore no meio do lago recém formado: eram galinhas que, para fugirem da enxurrada, escalaram os galhos e se instalaram no topo da árvore. Lá permaneceram todo o dia e a noite também, compondo uma árvore de, no mínimo, frutos muito estranhos.
Só no dia seguinte (2 de janeiro) a enchente deu trégua e possibilitou a passagem das pessoas. Solidárias, elas procuravam socorrer os mais necessitados. Estabeleceu-se uma faxina geral nas casas que foram invadidas pelas águas.
Segundo medição pluviométrica feita por um dos moradores da região, das 7h do dia 31 de dezembro de 2009 até o mesmo horário do dia seguinte, choveu o equivalente a quase 170 milímetros, de forma constante e intensa. Os prejuízos foram grandes para as pessoas – pequenos produtores rurais, com destaque para a pecuária leiteira e a olericultura (tomate, pimentão, abobrinha, etc.).
Como ficamos sem energia elétrica e sem telefone (lá não há sinal de celular), nada sabíamos do que estava acontecendo em outros bairros e cidades da região. Aos poucos as informações, através do boca a boca, foram chegando e pudemos ver que a situação ficou mesmo muito crítica.
Na garupa de uma motocicleta, único meio de transporte, além do cavalo, capaz de percorrer as castigadas estradas, eu constatei a queda de diversas barreiras e a destruição de pontes de madeira, que provocaram a interrupção total do trânsito na região. Num bairro vizinho, uma família inteira (seis pessoas) foi morta, vítima do desbarrancamento de um morro, enquanto dormia na madrugada do dia 1o de janeiro de 2010.
Foi também de carona numa moto e, por um grande trecho, a pé que eu consegui chegar até a rodovia que liga Cunha a Paraty (RJ). Não havia ônibus, porque essa estrada também tinha sido muito afetada com a queda de diversas barreiras. Caminhei por menos de um quilômetro e, felizmente, consegui uma carona até a cidade. Era uma família de São Paulo que também tem sítio na região e que estava fugindo das chuvas.
Já na cidade, o problema foi conseguir uma condução para Guaratinguetá, de onde seria possível embarcar, finalmente, para São Paulo. A rodovia Paulo Virgínio (SP-171) teve duas pontes de concreto destruídas, pelas águas dos rios Jacuí e Paraitinga. A solução foi arriscar-me numa lotação, que conseguiu desviar do asfalto e, por enlameadas e alagadas estradinhas de terra, chegar à rodoviária de Guaratinguetá.
Faz 32 anos que eu viajo para essa região. Nunca vi uma situação tão calamitosa. As estradas, de um modo geral, são muito mal conservadas, tanto as rurais como a rodovia SP-171. Esta, por sua vez, não vê um recapeamento decente há mais de 30 anos. O que se fez, nesse período, não passou de operações tapa buracos.
Cunha é uma estância climática com passado histórico. Foi o antigo caminho do ouro, que ligava Minas Gerais a Paraty, de onde o metal era embarcado para Portugal. Foi no território cunhense que também aconteceram alguns embates entre paulistas e cariocas, durante a Revolução Constitucionalista de 1932. A região serrana é muito bonita e aprazível, com paisagens encantadoras, belas cachoeiras, clima temperado agradável e um povo muito acolhedor, o que lhe confere grande potencial turístico.
Mas, tem sido fruto do também estranho e reiterado desleixo de sucessivas administrações públicas, tanto municipais como estaduais. O que deveria ser um eterno paraíso, nesse final e início de ano, transformou-se num inferno. Pobre da população que vive lá e não tem para onde fugir. Resta-lhe contabilizar perdas e recomeçar tudo outra vez.

*Joás Ferreira é jornalista, editor assistente da revista O Empreiteiro, e tem sítio em Cunha desde 1977.

Fonte: Estadão


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