Batizado com pompa como Eurotunnel, porque atravessa o Canal da Mancha, foi inaugurado em 6 de maio de 1994 pelo presidente François Mitterand e pela rainha Elizabeth. Mas esse projeto, sonhado há um século pelos dois países, se revelou um desastre quando foi construído, pois custou o dobro do orçamento original.
Em maio de 1997, a dívida com os bancos somava 8,7 bilhões de libras — ações que valiam 12 libras no pico da valorização estavam cotadas a 70 centavos de libra. Duas décadas depois, o movimento de passageiros atingiu apenas 50% da previsão inicial do projeto, pagando 46 libras por ida e volta, na travessia apenas do canal, de Folkestone a Calais, que dura 35 minutos, ou num percurso de 2h15 de Londres a Paris. Cerca de 320 milhões de passageiros já viajaram nessa rota. Os primeiros dividendos da empresa demoraram: foram prometidos aos acionistas para 1995, mas só foram pagos em 2009.
Quando entrou em colapso financeiro, em 2007, a Eurotunnel teve suas dívidas reestruturadas à custa dos seus 750 mil acionistas, muitos franceses, cujas ações viraram pó. Duas décadas depois do início da sua operação, o empreendimento equilibrou suas contas operacionais, beneficiado pela mellhoria da economia britânica. O número de passageiros está se expandindo, ao atingir 19,9 millhões em 2012 e 20,4 milhões em 2013, cujos veículos podem ser embarcados no trem. O movimento de carga transportada pelos trens dedicados aos caminhões melhorou 12% no período, somando uma receita de US$ 1,5 bilhão no ano passado.
A exclusividade do trem Eurostar no transporte de passageiros através do túnel está com os dias contados, porque a Comissão Europeia vem trabalhando para franquear toda a infraestrutura ferroviária do continente às empresas operadoras de todos os países membros, sem exceção. Isso já ocorre no setor de cargas, com trens de diversas nacionalidades atravessando o Canal da Mancha. A Eurostar é controlada pela SNCF francesa, com 55%, o governo britânico, com 40%, e a Bélgica, com 5%.
Depois de anos de negociações, em junho passado França e Inglaterra, que supervisionam a operação da Eurotunnel, aprovaram o ingresso da Deutsche Bahn na rota, para ligar Londres com a Alemanha e a Holanda, o que deve ocorrer quando a estatal alemã receber os trens de alta velocidade já encomendados à empresa Siemens. A Eurostar também já iniciou testes para chegar até Lion, Marselha e Amsterdã. Operadoras de outros países anunciaram seus próprios planos para trafegar nesta rota.
A história começa em 1802
Naquele ano, o engenheiro de minas francês Albert Mathieu-Favier fez o primeiro projeto de uma ligação fixa sob o Canal da Mancha, com dois túneis superpostos, sendo o superior pavimentado e iluminado com lampiões, destinado a carruagens puxadas a cavalo, e o inferior reservado para canalizar a água do subsolo. Em 1880, houve a primeira tentativa de escavação do túnel com uma TBM rudimentar, de marca Beaumont&English, abaixo do leito do mar em ambas as margens do canal.
Harold Macmillan, então ministro da Defesa britânico, anunciou em 1955 que não mais se opunha à construção do túnel do ponto de vista militar. Cinco anos depois, um grupo de estudo apresentou o projeto de dois túneis ferroviários mais um de serviço, que seriam escavados ou pré-moldados e submersos. Em 17 de novembro de 1973 foi assinado o tratado sobre o túnel da Mancha entre França e Inglaterra, ratificado, depois, em 1987, por Margaret Thatcher e François Mitterand. Em dezembro desse ano, começa a escavação do túnel de serviço com uma TBM pelo lado britânico, seguido por outra máquina na extremidade oposta em fevereiro de 1988. Em dezembro de 1990, as duas equipes se encontraram sob o canal da Mancha no túnel de serviço, a 22,3 km da costa inglesa e 15,6 km do litoral francês.
O consórcio construtor TML entregou o sistema de três túneis à Eurotunnel em dezembro de 1993, cuja abertura oficial foi celebrada em maio de 1994. Cinco anos depois, entra em operação comercial o primeiro trem destinado a caminhões — Arbel Truck Shuttle, seguido pelo serviço Pet Travel, destinado a cães e gatos, mostrando quanta afeição os ingleses e franceses têm por eles.
Em setembro de 2003, os ingleses inauguraram a primeira ligação por TAV de Londres a Folkstone, na boca do túnel da Mancha. Em fevereiro do ano seguinte, com a liberalização da carga ferroviária no continente, a Eurotunnel se torna a primeira operadora ferroviária com licença válida por toda a Europa. Em abril de 2004, um grupo de acionistas derrubou toda a diretoria da empresa numa assembleia geral, sob pressão do enorme descompasso entre receita e as dívidas oriundas da construção.
Em 15 de janeiro de 2007, a corte comercial de Paris aprova o plano de reestruturação financeira apresentada pela Eurotunnel, visando a reduzir suas dívidas de 9,2 bilhões para 4 bilhões de euros, pulverizando o valor das ações em poder de 750 mil acionistas, a maior parte franceses.
O Eurotunnel, que havia atingido 100 milhões de passageiro em meados de 2006, registra o primeiro incêndio, que teve origem num caminhão embarcado, na altura do trecho 6 do túnel Norte, em 11 de setembro de 2008. Em fevereiro do ano seguinte, foram concluídos os reparos e reaberta a operação comercial do túnel Norte. No início de 2010, os caminhões embarcados no trem superaram a marca de 15 milhões de veículos.
“Chunnel” — o maior túnel submarino em serviço
Este é uma espécie de apelido do termo Channel Tunnel em inglês. A seção sob o mar mede 38 km, com três túneis de 50 km cada, escavados a uma profundidade média de 40 m sob o leito marinho, ligando Folkestone in Kent a Coquelles, em Pas-de-Calais. Os trens de passageiros e de carga correm em dois túneis singelos unidirecionais, interligados ao terceiro túnel de serviço a intervalo de 375 m, que além de servir a fins de manutenção também constitui a área de escape para passageiros em casos de emergência. Há dois pontos de cruzamento que permitem aos trens passar de um túnel
ao outro, que pode ocorrer nos períodos noturnos de manutenção.
A infraestrutura do Eurotunnel inclui o terminal de Coquelles, perto de Calais, na França, ocupando uma área de 650 hectares, equivalente a um aeroporto internacional, e o de Folkstone, no lado britânico, de 150 ha. Dois RCC — centro de controle ferroviário em inglês — um em cada terminal, pode controlar sozinho toda a operação. O sistema todo tem duas partes, a RTM dedicada ao tráfego ferroviário e a outra EMS, que supervisiona os equipamentos fixos, como ventilação, iluminação, energia da catenária etc. Embora o conjunto seja automatizado, há controladores de plantão 24 horas por dia para assumir a operação manual em caso de necessidade.
O sistema de sinalização é conhecido pela sigla TVM 430, que transmite dados do trilho ao trem e é quase idêntico ao utilizado pelo TGV francês, no qual o operador da locomotiva lê as instruções no painel da cabine. Os trens operados por outras empresas ferroviárias prosseguem viagem pelas redes nacionais dos dois países, enquanto que as composições Eurostar fazem o retorno pelas “peras” nos dois terminais.
Os trens para passageiros carregam seus automóveis
As duas locomotivas, uma em cada ponta do trem que mede cerca de 800 m, são equipadas com três bogies dotados de dois eixos motorizados. Existe uma frota de 57 locomotivas Brush/Bombardier. Cada um dos nove trens de passageiros é dividido em duas metades — uma possui plataforma única para ônibus, vans, veículos com altura superior a 1,85 m; a outra leva carros e motos numa plataforma de dois andares. Esse trem de passageiros possui 24 vagões e quatro outros dedicados a embarque e desembarque, com capacidade para 12 ônibus e 120 carros.
Os trens de passageiros foram construídos com aço inoxidável pela Bombardier (canadense), BN (belga) e ANF (francesa). Os vagões são isolados com materiais empregados na indústria aeronáutica, contra altas variações térmicas, e podem resistir a 30 minutos de fogo. São fechados em cada extremidade por portas corta-fogo e equipados com detectores de fumaça, vapor, calor e fogo.
São 15 trens dedicados a caminhões, seis do tipo Breda-Fiat, nove do tipo Arbel, formado por duas locomotivas, três vagões de embarque/desembarque, 30 ou 32 vagões com espaço para um caminhão de 44 t. Por razões de segurança, os motoristas viajam num vagão separado .
Uma reputação pela confiabilidade
Considerado o túnel submarino mais comprido do mundo e a ferrovia de maior densidade de tráfego em operação, a rede da Eurotunnel já estabeleceu alguns recordes. Mais de 270 trens por dia — um trem a cada três minutos em horários de pico, viajando a 140 km/h (os que levam caminhões), podendo pesar 2.500 t, e a 160 km/h (os de passageiros e carros).
Como as linhas transportam 120 milhões t de carga ao ano, apontada como o maior deslocamento internacional sobre trilhos — o desgaste é tal que os trilhos da Eurotunnel já foram trocados duas vezes no período de 16 anos. Ao lidar com essa densidade de tráfego e carga, a operadora tornou-se uma referência mundial em manutenção ferroviária. O Plano Produtivo de Manutenção elabora a programação de sete tipos de manutenção, como uma típica atividade industrial contínua, a partir de 2002. Em dez anos, a equipe de manutenção do material rodante encolheu de 550 funcionários para 350, enquanto a frota de vagões praticamente dobrou, somando cerca de 1.000 unidades hoje.
No terminal de Coquelles, quando os trens ingressam na oficina de manutenção, cada roda é escaneada para se registrar uma série de medidas, que vai indicar a necessidade ou não de ela ser tratada numa máquina instalada no subsolo, para recuperar seu perfil. Essa atenção dada às rodas prolonga igualmente a vida útil dos trilhos.
Outro projeto de pesquisa da Eurotunnel com empresas industriais da região gerou um novo tipo de trilho, que foi instalado num trecho experimental de 1.200 m, aplicando uma nova técnica de solda. Ao contrário dos trilhos existentes, que são limados com frequência, esse protótipo ainda não precisou de nenhum serviço após 18 meses de testes.
Como os estudos indicam o crescimento contínuo do embarque de caminhões, a operadora está modernizando as locomotivas de 5,6 MW de potência para 7 MW. Esse programa, que investiu 90 milhões de euros em 2013, repotenciou 45 locomotivas para 7 MW, deixando 13 locomotivas antigas para a etapa seguinte.
Único incêndio no túnel, sem vítimas, ocorreu em setembro de 2008
Pouco antes das 15h de 11 de setembro de 2008, um incêndio começou num caminhão embarcado no trem da Eurotunnel no túnel Norte, sob o canal, indo da Inglaterra à França, e estava a 11 km da saída no território francês. Os sistemas de prevenção no túnel identificaram a ocorrência e a equipe do lado francês entrou em ação para controlar o fogo e evacuar 32 pessoas a bordo para o túnel de serviço. Três outros trens trafegando no túnel retornaram para a Inglaterra. Às 10h30 do dia seguinte, todos os focos de incêndio foram extintos.
Às 23h de 12 de setembro, após inspeções detalhadas no Túnel Sul, o tráfego foi reiniciado com dois trens de carga que saíram da Inglaterra, seguidos por um trem com 27 caminhões a bordo. No dia seguinte, 80 trens de caminhões cruzaram o canal em ambos os sentidos, e o serviço de passageiros e carros foi retomado em 14 de setembro, três dias após o incêndio, usando o Túnel Sul.
O trecho 2 do Túnel Norte (próximo da Inglaterra) retornou à operação em 22 de setembro, que, somado ao Túnel Sul, elevou o total diário de trens para 170. Uma semana depois, o trecho 4 voltou a funcionar.
No início de outubro, foi contratada a empresa Setec para supervisionar os trabalhos de recuperação do trecho 6 do Túnel Norte, a cargo de um consórcio liderado pela Freyssinet (obras civis), ETF (trilhos e catenária) e Vinci Energies (outros equipamentos). O prazo aproximado era de quatro meses, reabrindo-se o túnel em fevereiro de 2009. Custo estimado: 60
milhões de euros. No final de outubro, o tráfego já havia retornado ao normal, com o fator de carga de 90% nos trens de caminhões, registrando-se a passagem do 14º milionésimo caminhão embarcado. No dia 9 de fevereiro de 2009, foi reaberto oficialmente o trecho 6 do Túnel Norte, voltando a operar os trens a 140 km/h, num total de quatro saídas por hora e por sentido para os trens de passageiros, e seis saídas no mesmo intervalo para os de caminhões.
Fonte: Revista O Empreiteiro