Meio século depois de Brasília, seria de imaginar-se que o planejamento urbano no País estivesse de tal modo avançado, que constituísse uma marca na organização espacial das cidades brasileiras. Mas, pelo que se vê, considerando os problemas de toda ordem no mapa da ocupação do solo urbano, derivando em especial pelas áreas de risco e pelas margens de canais, rios e lagoas, e até nos lixões compactados pelo tempo e hoje, com um deles transformado em túmulo para moradores da baixa renda (caso do Morro do Bumba, em Niterói-RJ), a constatação é de que não se avançou muito nesse campo, mesmo depois do exemplo de Brasília.
Longe vai o dia em que o mestre dos urbanistas brasileiros, Lúcio Costa, dava o tom do planejamento urbano, com a nova capital federal, mostrando que ela resultaria de um toque de simplicidade: "Brasília nasceu do gesto primário de quem assinala um lugar ou dele toma posse: dois eixos cruzados em ângulo reto, ou seja, o próprio sinal da cruz. Procurou-se, depois, a adaptação à topografia local, ao escoamento natural das águas, à melhor orientação, arqueando-se um dos eixos a fim de contê-lo no ângulo equilátero que define a área urbanizada".
E seguia por aí Lúcio Costa, que reconheceria, em Registro de uma vivência: "Apesar de problemas de ordem política, econômica e social – aos quais se vieram juntar outros de natureza institucional – a verdade é que Brasília existe, onde há poucos anos só havia deserto e solidão". E finalizando: "… Brasília, tanto por sua planificação como por sua arquitetura, corresponde a uma realidade e a uma sensibilidade brasileiras…"
O exemplo maior do planejamento urbano veio de longe, pelas mãos e inteligência de Lúcio Costa, Oscar Niemeyer, Joaquim Cardozo, de outros profissionais e dos candangos que trabalharam na construção da cidade, rendendo-se à obstinação desenvolvimentista de Juscelino Kubitschek.
Mas o exemplo não frutificou. Apesar do capítulo sobre urbanismo, inserido na Constituição de 1988; apesar do Estatuto da Cidade, resultado de uma luta de muitos, mas em especial do jornalista e senador Pompeu de Souza, o planejamento urbano brasileiro não se consolidou como um ideário forte e necessário a ser adotado pelas pequenas, médias e grandes cidades.
O raciocínio simplista é de que Brasília nasceu do nada. E, a partir do nada, tudo poderia ser feito na medida do que fosse proposto. Já as cidades formadas ou em crescimento natural a partir de suas estruturas definidas, qualquer mudança se torna difícil e requer um penoso processo de negociação, que se estende das remotas periferias às câmaras de vereadores.
A evolução se dá por etapas, com as obras de infraestrutura sempre atrasadas e invariavelmente muito aquém das demandas nas áreas dos transportes, saúde, habitação e demais equipamentos urbanos. Invariavelmente as mudanças ocorrem para atendimento de interesses específicos, que muitas vezes nada têm a ver com os interesses gerais, que dizem respeito à maioria da população.
Por conta da negligência do poder público em adotar planejamento urbano eficiente, que estabeleça padrões corretos para a ocupação sensata e segura do solo urbano, a sociedade é surpreendida pelas tragédias que vêm das enchentes, dos deslizamentos das áreas de risco, das devastações nas cidades ribeirinhas. As tragédias sempre estão à frente do planejamento urbano. Por isso, enfatizamos: mesmo após Brasília, que reúne o que o Brasil pode oferecer de melhor para ele próprio e para o mundo, do ponto de vista da ocupação do solo urbano, continuamos atrasados. E, mesmo a cidade de Lúcio Costa e Niemeyer, sofre o impacto das contradições brasileiras, correndo o risco de ficar como um exemplo. – Um exemplo que aponta apenas para o passado.
Fonte: Estadão