No diário que vai aqui fragmentado, as anotações refletem o que segue pela política, economia e vida social. Em tudo perdura um resquício patrimonialista que a evolução das técnicas e dos costumes não conseguiu extirpar. Nildo Carlos Oliveira
Para entendimento da realidade brasileira, não basta ver e ouvir. Às vezes é necessário ir aos mestres do passado. Fernão Lopes, por exemplo, o tabelião que viveu nos reinados de D. João I e de seus filhos e netos e que se tornou o maior cronista de seu tempo – aqueles recuados anos anteriores a 1500. Alguns de seus registros dão a medida do poder real na vida pública e na vida privada: Como el-rei quisera meter um bispo a tormento porque dormia com uma mulher casada. Ou: Como el-rei mandou queimar a mulher de Afonso André e de outras justiças que mandou praticar.”
Passando de Fernão Lopes aos nossos dias temos Raymundo Faoro que, em Os donos do poder, traça uma linha paralela que vai de Dom João I a Getúlio Vargas – uma viagem de seis séculos – para mostrar como uma estrutura político-social “resistiu a todas as transformações fundamentais, aos desafios mais profundos, à travessia do oceano largo”, para emitir o seguinte juízo: “Dessa realidade se projeta, em florescimento natural, a forma de poder, institucionalizada num tipo de domínio – o patrimonialismo, cuja legitimidade assenta no tradicionalismo – assim é porque sempre foi”.
“Um assim é porque sempre foi” rompe os limites da era Vargas e chega até aqui de bigode e jaquetão ou em outras metamorfoses ambulantes, mas sempre agarrado ao poder por considerá-lo inerente aos padrões de vida que tem marcado o sistema Casa Grande & Senzala em todos os tempos brasileiros.
Ele se manifesta no compadrio político e no terreno comum onde os protagonistas maiores do poder não fazem distinção entre o que é público e o que é privado e onde todos se perdoam, porque todos são igualmente culpados.
Resultado desse ambiente no qual corrompidos e corrompedores compartilham da mesma bolsa para a qual é drenado o dinheiro público, vem a complacência do conselho de ética da Câmara dos Deputados para os que constroem castelos ludibriando o fisco, e para aqueles que gritam, com todas as forças, que se lixam para a opinião pública.
Na outra Casa, o Senado, os escândalos assumem dimensões semelhantes ou maiores: os velhos oligarcas compram mansões e conseguem escondê-las do olho da fiscalização; legislam para eles mesmos e criam auxílio-moradia e verbas indenizatórias com as quais custeiam empreendimentos particulares, incluindo fundações para preservar a própria memória; usam dinheiro do Tesouro para pagamento de ostentação particular; viajam de sul a norte e do Brasil para outras regiões do mundo levando familiares ou namoradas a tiracolo com passagens pagas pela verba congressual; praticam o nepotismo disfarçado e recorrem às emendas parlamentares para se aproximar dos eleitores e se perpetuarem em suas bases.
No outro Poder, o Executivo, as coisas não são diferentes. Os recursos para obras públicas são tratados como óbolos. E, embora tenha havido evolução por conta de legislação mais recente, sabe-se que nas entranhas do poder coisas estranhas acontecem. Até mudanças, por decreto, para permitir fusão de empresas favorecida pelo financiamento de bancos públicos.
E é nessas entranhas que o Poder molda a imagem dos futuros governantes. Usa-se o Bolsa-Família como um cabresto a assegurar o voto de potenciais eleitores, aliviandolhes o peso da miséria não com a criação de trabalho – essa atividade que dá ao homem a dimensão de sua dignidade e responsabilidade -, mas com um sistema assistencialista que acaba azeitando um círculo vicioso que o corrompe e liquida.
Quando se antevê a possível carência de recursos para a manutenção dessa máquina que funciona no topo da pirâmide, a solução é simples: recorre-se ao aumento da carga tributária, que no ano passado alcançou 35,8% do Produto Interno Bruto. Resumindo:o Poder (leia-se Estado) entesoura a parte de leão da riqueza do País, sem colocá-la em contrapartida aceitável para melhorar a saúde, a segurança, a habitação, o transporte, a dignidade e a cidadania.
Mas o Judiciário não fica incólume. Dizia-se, com uma reiteração monótona, que sentença judicial não se discute; cumpre-se. Bobagem. Nos estreitos limites entre a vida e a morte, tudo deve e pode ser discutido e questionado. A justiça tem sido, através de todos os tempos, a mão do poder. E é através dela que o poder se manifesta e, invariavelmente, a favor daqueles que elaboraram as leis do poder.
Sobre as questões de justiça, voltemos a Fernão Lopes, que redigiu as crônicas de todos os reis de Portugal, a partir do conde D. Henrique e que parecia olhar, de binóculo, para esses nossos tempos. A metáfora que ele utiliza para mostrar que todos são iguais, mas que alguns são mais iguais do que os outros, é a seguinte: “E assim se pode dizer deste rei D. Pedro que não saíram certos no seu tempo os ditos de Sólon, filósofo, e outros alguns: que as leis e a justiça eram como a teia da aranha, em que os mosquitos pequenos, caindo, ficam presos e morrem, e as moscas grandes e mais rijas a rompem e se escapam; querendo com isto dizer que as leis e a justiça só se cumprem nos pobres, mas não nos grandes, que têm ajuda par as romper e escapar”.
Fragmentos do diário do Brasil
2008, Julho
Brasil burlesco. Começo o mês lendo em Almanaque Armorial, de Ariano Suassuna: “… a roupa e as alpercatas que uso em meu dia-a-dia são apenas uma indicação do meu desejo de identificar meu trabalho com aquilo que Machado de Assis chamava de Brasil real”. Sim, o velho Machado, em diversos de seus escritos, estabelece a distinção entre os dois Brasis: “O país real, esse é bom, revela os melhores instintos. Mas o país oficial, esse é caricato e burlesco”. Talvez hoje o Bruxo do Cosme Velho não o considerasse apenas burlesco, mas trágico em sua imoralidade oficial.Otimismo moderado. Há um tom de otimismo moderado no ar. Na edição deste mês de O Empreiteiro, o editorial revela: “Estamos no limiar de uma etapa em que um passo em falso ou indecisão pode comprometer as possibilidades de crescimento sustentável. Foi muito longo e penoso o caminho percorrido até aqui, a partir da década de 1980, que desaguou no Plano Real, na estabilização da economia, nas privatizações das telecomunicações e nas concessões da geração elétrica, rodovias e ferrovias”. Em uma das matérias da edição reconhecíamos que o País cresce, mas insiste em não corrigir suas tradicionais distorções e continua a carecer de um projeto de futuro.
O antigo e o novo. O empresarial e líder setorial Luiz Fernando dos Santos Reis faz uma constatação ou comete uma ironia? Referindo- se às obras relacionadas no Programa de Aceleração do Crescimento, diz caber ao presidente Lula da Silva um grande mérito: o mérito de não fazer nenhuma obra nova, uma vez que vem tocando, apenas, uma série de obras antigas, herdadas das administrações que vieram se sucedendo ao longo de décadas.
Agosto
Josué de Castro. A professora Anna Maria de Castro, professora de sociologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), lembra, na Revista História da Biblioteca Nacional o centenário, este ano, do nascimento do médico e geógrafo Josué de Castro, autor da obra Geopolítica da Fome. Em destaque a frase, que prossegue atual: “O problema da fome mundial não é um problema de limitação da produção por coerção das forças naturais; é, antes, um problema de política essencialmente baseada na desigualdade econômica e social e na divisão premeditada do mundo em grupos dominadores e grupos dominados”. Cassado pela ditadura de 1964, Josué de Castro morreu no dia 27 de setembro de 1973 sem ter podido retornar ao seu país.Pré-sal. Divulga-se intensamente a descoberta de uma nova fronteira petrolífera no Brasil:
O pré-sal. A área vai do litoral de Santa Catarina ao Espírito Santo, a uma profundidade da ordem de 7 mil m, constituindo reserva possivelmente superior a 50 bilhões de barris de óleo. O empresário Paulo Godoy, que preside a associação das indústrias de base, considera o seguinte: “Como temos a maior empresa off shore do mundo, a Petrobras, nada mais justo que tenhamos a maior indústria de off shore instalada no Brasil”. Nesse mês, e por conta do pré-sal, o otimismo oficial subiu à estratosfera, com rompantes da época do “Brasil grande”.Desastre na engenharia. O
Consórcio Via Amarela, responsável pelas obras da linha 4 (Amarela) do Metrô paulistano, contesta laudo do IPT sobre as causas do acidente no túnel da estação Pinheiros. O desastre ocorreu no dia 12 de janeiro de 2007 e provocou sete óbitos. A partir desse desastre, cujas repercussões se projetarão para o futuro, torna-se necessário discutir a qualidade da engenharia brasileira
Setembro
BNDES. O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) se parece cada vez mais com um banco, na medida em que o Social tende a conflitar com os seus objetivos de origem. De qualquer modo, ele está aumentando o desembolso para a infraestrutura e tornou-se o principal financiador das obras do PAC. Mas, a maior pressão sobre os recursos do banco resulta do apoio a grandes operações. Uma delas, em especial, acende o sinal de alerta: a compra da Brasil Telecom pela Oi.
“Síntese de tudo”. O presidente da Vale, Roger Agnelli, anda mesmo entusiasmado com o presidente Lula da Silva. Foi assim a manifestação dele numa entrevista à Folha de S. Paulo: “Genial, genial. Ele é a síntese de tudo. Impossível não gostar dele”. Nesse mês, suas previsões sobre o ciclo das commodities são muito otimistas: “Vários países estão crescendo e vão continuar crescendo. Por isso, têm de investir pesadamente em infraestrutura. Esses investimentos exigem muito minério de ferro, cobre, alumínio, níquel, tudo”.
O desenho da crise. O curioso, ao ler ou ouvir algumas manifestações de empresários, é o fato de que eles não hajam atentado, há mais tempo, para o tamanho da crise financeira global. Acaso não vinham recebendo dos profetas da economia algum sinal de alerta para frear o otimismo exagerado e colocar os pés no chão? As empresas brasileiras pelo menos as mais prudentes, e que vinham tentando tomar empréstimos no mercado internacional, terão de protelar os seus planos. Júlio Gomes de Almeida, hoje consultor do Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (Iedi), diz que o governo já parou de comprar dólares e está com o dedo no gatilho para o caso de precisar vendê-los como forma de evitar uma forte desvalorização do real.
Outubro
Três empresas. A Carioca, a Concremate a Teckma são eleitas Empresas de Engenharia do Ano. O que me atrai na história delas é o passado. Com exceção da Teckma, fundada em 1992, as demais têm raízes antigas. A Carioca foi fundada em 1947 e, a Concremat, em 1958. Ambas fizeram história no começo da industrialização brasileira. Industrialização e maior urbanização, com o advento de Brasília, caracterizada por Clarice Lispector como “um espanto”.
Falando grosso. O presidente Rafael Corrêa, do Equador, parece estar gostando da briga com empresas brasileiras que trabalham em seu país. Acaba de expulsar a Construtora Norberto Odebrecht de lá e, agora, prepara a expulsão também de Furnas. Nesse caso, ele recorre a tal expediente mais pelo vício da retórica do que pelo efeito prático que o ato pode produzir.
Hobsbawn. Sim, trata-se do britânico EricHobsbawn, um dos historiadores mais influentes do século passado e cuja inteligência se projeta para esse começo de milênio. Dele, anoto as seguintes observações sobre a crise global: “Sabemos que estamos no fim de uma era. A partir de agora, falaremos mais de Keynes ( John Maynard) e menos de Friedman (Friedrich) e Hayek. Qualquer que seja o papel que os governos venham a assumir, será algo que orientará, organizará e dirigirá também a economia privada. Com relação ao Estado, acho que ele será mais pragmático. Sempre dissemos que o capitalismo iria se chocar, um dia, com as suas próprias dificuldades”.
Novembro
Barack Obama. O primeiro presidente negro dos Estados Unidos toma posse, prometendo varrer da Casa Branca os resquícios da política equivocada de George W. Bush, tanto na política interna quanto na política externa do País. Vale a pena transcrever algumas das palavras do novo presidente: “Àqueles que querem destruir o nosso mundo, nós os derrotaremos. Àqueles que buscam paz e segurança, nós os apoiaremos. E a todos aqueles que vêm se perguntando se o farol da América ainda brilha como antes, nós provaremos mais uma vez que a verdadeira força de nossa nação vem, não da bravura das nossas armas ou do tamanho da nossa riqueza, mas do poder duradouro de nossos ideais de democracia, liberdade, oportunidade e inabalável esperança”.
Os três desafios do novo presidente. Luiz Carlos Bresser Pereira (professor emérito da FGV-SP) lista três desafios imediatamente colocados no caminho de Obama: reverter o aumento da desigualdade nos EUA; abandonar a atitude imperial de seu país em relação ao resto do mundo e associar-se às demais nações para superar a crise financeira global. O reflexo da crise que vinha se acentuando naquele país – e que não era de hoje – está expresso nos seguintes dados: o número de despejos de proprietários inadimplentes em financiamento imobiliário passou de 1,2 milhão em 2006, para 2,2 milhões em 2007. E nos últimos dez meses deste ano o número já é bem maior do que o de todo o ano passado.
Tragédia em SC. Mais uma vez é catastrófica a situação, com as cheias do Vale do Itajaí, em Santa Catarina. As causas? – As mesmas que têm se repetido em todas as demais ocasiões anteriores, em décadas passadas: ocupação predatória das áreas urbanas e rurais; carência de obras de drenagem em áreas de risco e às margens de rodovias; falta de obras de contenção ou contenção realizada sem acompanhamento geotécnico, e falta de fiscalização e de controle das encostas. Tudo isso está resumido no seguinte: as administrações públicas vêm se sucedendo e deixando, uma para a outra, a bomba-relógio do desleixo no exercício de governar.
Nobel sabatinado. O escritor português José Saramago é sabatinado no jornal FSP. O Nobel de Literatura de 1998 diz que a história da humanidade é um desastre continuo. Nunca houve nada que se parecesse com um momento de paz. “Não se apercebeu”, afirma ele, “que o instinto serve melhor aos animais do que a razão serve ao homem”.
Surpresa na transposição. Sim, foi uma grande surpresa nesse final de ano. A Construtora Camargo Corrêa desistiu de participar das obras de transposição do rio São Francisco, orçadas em R$ 6,8 bilhões incluindo projetos ambientais e de revitalização das áreas de domínio. Ela vencera a licitação para fazer as obras do lote 9 apresentando aquela que foi considerada a melhor proposta. Contudo, o preço cobrado estava, segundo a empresa, “12% abaixo do previsto no orçamento básico do edital”. Além disso, foi condicionada pelo TCU, quando convocada a assinar o contrato, a dar um desconto de mais 7%.
Fonte: Estadão