Um diálogo, franco e aberto, entre essas três personalidades da República no século passado, poderia ser este. E, como poderia, vamos supor que haja ocorrido
Nildo Carlos Oliveira
O incrível diálogo entre Getúlio Vargas, Juscelino e Castello Branco
Um dia, no estágio atual da República brasileira, eles se encontraram. Então, eventuais idiossincrasias e vestígios de suscetibilidades aguçadas por ódio ideológico fomentado interna ou externamente, ou por diferentes convicções obsessivas de cada um, já teriam se dissipado. E poderiam dialogar à vontade, a partir de experiências que os tornaram simples pessoas comuns. O diálogo – ou o monólogo – foi o seguinte:
Getúlio Vargas: “Nasci há 132 anos em São Borja (RS) e nunca imaginei, mesmo quando chefiei o governo provisório, depois da Revolução de 30, que seria considerado o melhor presidente da história brasileira”.
Juscelino: “O melhor? Não vou lhe negar a pretensão. Você teve mais tempo e oportunidade para fazer uma administração mais ampla e longeva do que a minha”.
Castello: “Nisso o velho de São Borja tem razão. Foi presidente pela Constituinte em 1934, esteve à frente da ditadura do Estado Novo em 1937 e, depois de deposto em outubro de 1945, voltou a ser presidente, eleito pelo povo, em 1951. Poderia ter continuado, mas deu aquele tiro no coração, no Catete, no dia 24 de agosto de 1954”.
Juscelino: “Você, Getúlio, foi o ‘pai dos pobres’. Usou a política para manter ‘os trabalhadores do Brasil’ sob o seu domínio. Usou os mesmos métodos a que recorreram o Perón, na Argentina, e o Lázaro Cárdenas, no México”.
Getúlio: “Mas nada me assustava. A minha fase liquidou a República Velha e iniciou, na década de 1940, o processo de modernização da infraestrutura brasileira, que você, Juscelino, prosseguiu e poderia ter continuado. Mas não deu cobro, com rigor, às acusações de presidente perdulário, que provocou a maior inflação no seu tempo com a construção de Brasília. Diante de todos os obstáculos, que você fez? Ria. Ria para a esquerda ou para a direita, indiferente aos epítetos de Presidente Bossa Nova, Pé de Valsa ou Peixe-Vivo”.
Getúlio prosseguiu: “Tudo o que fiz, até horas antes de escrever a minha Carta-Testamento – e as consequências que ela provocou – foi em favor do Brasil. Vou refrescar a memória de vocês”. E passou a enumerar algumas das suas principais realizações na Presidência da República:
• Assinou a Consolidação das Leis do Trabalho, que garantia a estabilidade do trabalhador no emprego.
• Criou a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), que iniciou a construção da Usina de Volta Redonda, contando, para isso, com financiamentos norte-americanos, obtidos com a adesão brasileira à 2ª Guerra Mundial, ao lado dos aliados contra o nazifascismo.
• Criou a Companhia Hidroelétrica do São Francisco, a Chesf.
• Criou a Companhia Vale do Rio Doce.
• Criou o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
• Criou a Eletrobras.
• Promoveu a expansão e o redirecionamento da malha rodoviária do País, ao lado da malha ferroviária.
• E, entre outras realizações, assinou, no dia 3 de outubro de 1953, a Lei 2004, que criou a Petrobras.
Juscelino: “Reconheço as obras que você realizou e modernizaram o País. Mas faltava muita coisa. O Brasil precisava acelerar o seu processo de industrialização, abrir mercado interno e sair daquela clássica modorra litorânea, a fim de caminhar para o interior. E isso foi tarefa minha”. Em seguida, passou a monologar, quase se esquecendo de que estava ao lado de Vargas e Castello Branco:
“O Brasil me elegeu presidente em 1956, numa campanha que reuniu o PSD e o PTB na chapa em que ficou ao meu lado o senhor João Goulart. Sabia que não me seria fácil governar para uma população que naquele período tinha uma renda per capita de apenas 137 dólares. E tinha a convicção de que o meu governo teria de forçar o Brasil a optar pela indústria pesada, substituindo as pequenas manufaturas pela produção de aço e de outros metais; pela química de base e pelos demais produtos intermediários.
“Celso Furtado e vários outros colaboradores me ajudaram na montagem do Plano de Metas, com o qual pretendia construir 50 anos em cinco. Ao contrário do que você diz, Getúlio – e os meus adversários políticos alardeavam envenenando a opinião pública –, aquele não era um plano inflacionário, mesmo com a inclusão da mudança da capital da República para o Planalto Central.
“Com o Plano de Metas consolidei a industrialização, instalando aqui a indústria automobilística; multipliquei as plantas siderúrgicas e desenvolvi a construção naval e os transportes necessários para o avanço de nossa agricultura. Pensando em tudo isso, trouxe para o Brasil a Verolme, a Ishikawajima, a Niigetabras e a Ellicor, e ajudei a ampliar os estaleiros Mauá, Emaq, Caneco e Aratu. A fabricação de chapas grossas de aço em Minas foi decisiva para esse fim.
“A construção de Brasília foi uma epopeia à brasileira. Lúcio Costa costumava dizer que a nova capital nasceu de um gesto de quem assinala um lugar ou dele toma posse: os eixos se cruzam em ângulo reto, formando o sinal da cruz. Com as obras de Brasília, passaram a me chamar de presidente da inflação. Pois digo o seguinte: o Brasil estava, há muitos anos, mesmo antes do meu governo, a esperar que acontecesse o que aconteceu: obras da infraestrutura necessária para gerar o avanço da economia.
“O meu governo investiu US$ 239 milhões no reaparelhamento ferroviário e construiu 826,5 km de ferrovias numa meta de 1.500 km; construiu 14.970 km de estradas, correspondentes a 115% da meta prevista, que era 13.000 km e pavimentou 6.202 km de estradas, quando a meta era pavimentar 5.800 km.
“Apesar disso, fui vítima de dois sacrifícios extremos: a morte política prematura, sugerida pelo general Costa e Silva e que você, Castello Branco, decretou, no dia 8 de junho de 1964, e a morte física, ocorrida no dia 22 de agosto de 1976, na via Dutra”.
Castello Branco: “Dois estadistas. Reconheço que, depois de vocês, está muito difícil encontrar um por aqui. Mas o meu governo atendeu a um chamado popular. O Brasil precisava se contrapor àquela anarquia dos tempos do Goulart. (Vargas e Juscelino discordaram, iam protestar, mas o ambiente era de descontração.)
Castello Branco: “Houve os Atos Institucionais e não havia como deixar de obedecê-los. No meu governo foram criados o Serviço Nacional de Informações (SNI) e a Lei de Segurança Nacional. Mas também instituímos o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) e criamos o Instituto Nacional de Previdência Social (INPS). Além disso, colocamos em prática o Plano de Ação Econômica do Governo (Paeg). Para conduzir a bom termo a economia, colocamos o Roberto Campos no Ministério de Planejamento. A intenção dele, de controlar a inflação, foi muito boa. Pena que haja provocado aquela onda de desemprego. E não se esqueçam: com o Roberto Campos à frente daquele ministério idealizamos o Banco Nacional da Habitação (BNH), instituímos o Banco Central e criamos o Estatuto da Terra.
“Bem, cassei os seus direitos políticos, Juscelino. Hoje, talvez refletisse melhor e não acatasse a sugestão do Costa e Silva. É que, depois de você, e depois do João Paulo dos Reis Velloso, aconteceu um fato que me constrange e deve constranger outros brasileiros”.
Getúlio e Juscelino (em coro): “E o que é, Castello? O que é que pode estar constrangendo outros brasileiros?”.
Castello Branco: “A constatação de que, depois de vocês – e de nós, os militares, com o I e o II Plano Nacional de Desenvolvimento (PNDs) do Reis Velloso – o Brasil perdeu a capacidade de planejar o seu futuro. Foi durante o regime militar que houve a construção de Itaipu, da usina nuclear de Angra e o começo da exploração do petróleo na plataforma continental do litoral brasileiro, o que resultou no início do processo da autossuficiência no abastecimento do produto.”
Juscelino: “Mas, não se esqueça, Castello: o AI 5 foi a ruptura com a liberdade e, sem ela, nada se justifica”. Getúlio Vargas, possivelmente se esquecendo do Estado Novo, apoiou Juscelino.
Castello: “Deixe-me continuar: lastimavelmente houve o desvio do eixo histórico com a morte do Tancredo e a posse do Sarney. Derivamos, depois, para o “Caçador de Marajás”. O Itamar até que conseguiu o equilíbrio da economia, colocando o FHC no Ministério da Fazenda e adotando o Plano Real. Mas, depois, o populismo sem lastro está dando no que vemos.”
Juscelino: “A descontinuidade de propósito, por conta da ausência de um projeto de Nação, embaralha os dados políticos, econômicos e institucionais. A corrupção deixou de ser uma exceção e os protestos estão nas ruas. E são bem-vindos”. Castello interrompeu o diálogo e recolheu-se.
Fonte: Redação OE