Veículos do século 21 em estradas de séculos atrás

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Está ali, no Sagarana de João Guimarães Rosa, na história Traços Biográficos de Lalino Salathiel ou a volta do marido pródigo, a descrição do trabalho de engenharia desenvolvido quando era construída a estrada de rodagem Belo Horizonte-São Paulo (Fernão Dias), em meados do século passado:

“Nove horas e trinta. Um cincerro tilinta. É um burrinho, que vem sozinho, puxando o carroção. Patas em marcha matemática, andar consciencioso e macio, ele chega, de sobremão. Pára no lugar justo onde tem de parar e fecha imediatamente os olhos. O preto desaferrolha o taipal da traseira, e a terra vai caindo para o barranco”.
“No meio do caminho cruza-se com o burro pêlo-de-rato que vem com o outro carroção. É o décimo terceiro, hoje, e como ainda irão passar um pelo outro, sem falta, umas três vezes tanto – do aterro ao corte, do corte ao aterro – não se cumprimentam”.

“No corte, a turma do seu Marra bate rijo, de picareta, atacando no paredão pedrento a brutalidade cinzenta do gneiss. Bom trecho, pois, remunerador”… “E isto aqui é um quilômetro da estrada de rodagem Belo Horizonte-São Paulo, em ativos trabalhos de construção”.

Era assim, sem tirar nem pôr, que avançavam, naquele tempo, a golpes de picareta e com a força de alimárias, a construção de estradas, mesmo as mais importantes do País, antes que fossem desembarcadas por aqui as primeiras máquinas de terraplenagem capazes de substituir a tração animal nos serviços de corte e aterro, e o uso de carroções nas operações de bota-fora.

Tudo mudou com o uso dos tratores importados, a aplicação das modernas técnicas de pavimentação e de construção de tabuleiros de pontes e viadutos. Dentre as obras, à época, consideradas notáveis, se inclui o Viaduto Vila Rica, perto de Itabirito, na BR-040 (Rio-Bahia). Com 262 m de comprimento e 9 m de largura, foi calculado pelo engenheiro Sérgio Marques de Souza, já falecido, e executado pela Construtora Rabello.

Esse viaduto, inaugurado em 1953 por Juscelino Kubitschek, então governador de Minas Gerais, veio a tornar-se obsoleto depois da década de 1970. E ganhou outro nome, mais popular, em razão do imenso número de acidentes que ali começou a ocorrer: Viaduto das Almas. Segundo as estatísticas, no local já morreram cerca de 200 pessoas.

O viaduto reflete um mal de várias obras de arte e da maior parte das estradas brasileiras. Passa o tempo, não há renovação e mudança, o traçado continua o mesmo e, em conseqüência, os desastres, com graves prejuízos humanos e materiais, não param de acontecer.

É que esses viadutos, pontes e estradas acabam se tornando incompatíveis com o fluxo da frota atual de veículos do País. Estão inadequados à capacidade, peso, dimensão e velocidade dos novos veículos. E o Viaduto das Almas é um exemplo: acanhado, construído para suportar tráfego condizente com a época, recebe hoje um movimento da ordem de 12 mil veículos/dia.

Depois de tantas mortes e tanto tempo, um novo viaduto vai substituí-lo. Terá 450 m de extensão, 60 m de altura, dois tabuleiros independentes com duas pistas defaixa dupla e acostamento, somando 22 m de largura. Mas deve ser inaugurado somente em janeiro de 2009.

Até lá, conforme vem ocorrendo com a maior parte das estradas brasileiras, o usuário vai convivendo, nesse começo do século 21, com estradas cujo traçado remonta à época em que construir rodovias merecia um texto impecável do mestre Guimarães Rosa.

Fonte: Estadão


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