Por Vanessa Vignati
Dezessete anos após sediar os Jogos Olímpicos, Barcelona continua a mostrar como conseguiu, com projeto urbanístico propiciado pela competição, transformar a cidade em termos sociais, políticos e culturais, tornando-a um dos destinos do turismo europeu mais concorrido
Barcelona estava de costas para o mar. Essa é a frase mais usada, quando o questionamento aborda a revitalização que ocorreu na cidade para os jogos olímpicos de 1992. Se o passeio marítimo foi o grande responsável por transformar a capital da Catalunha em um dos lugares mais disputados entre os turistas do mundo todo, o Rio de Janeiro, sem dúvidas, já dispõe dessa maravilha para receber a competição mundial em 2016.
Mesmo este sendo o resultado lembrado por grande parte dos 1,6 milhões de moradores, o projeto olímpico esteve muito, mas muito além do porto. A estratégia urbanística iniciada pelo prefeito Narcis Serra e pelo sucessor Pasqual Maragall para receber os jogos foi adotada como uma renovação política e social, comportando também a implantação da infraestrutura urbano e de serviços indispensáveis para o evento e para utilização posterior. "As Olimpíadas não somente ensejaram uma grande transformação na cidade, como também geraram em seus habitantes um enorme interesse pela arquitetura e urbanismo que dura até hoje", explica o urbanista barcelonês Alejandro Gimenez.
Para entender o grande feito é necessário lembrar como se encontrava o palco. Barcelona estava deteriorada pela especulação imobiliária, com graves déficits de redidências e a configuração local era "cinza", após a ditadura franquista, quando, com Constituição, pode ser aprovado o Estatuto d´Autonomia de 1979. Assim, os jogos se converteram em uma carta de apresentação da Espanha democrática, receptiva, moderna, rompendo velhos estereótipos, a nível internacional.
Como conseqüência o aumento considerável de turistas na região que passou de dois milhões (1992) para sete, 15 anos depois, e claro, a diminuição no índice de desemprego, que alcançava o limite de 20%, na época da candidatura para abrigar o evento. Tudo foi tão calculado, que ao contrario de edições anteriores como Montreal (1976), a capital da Catalunha não sofreu um forte impacto com dívidas. O financiamento requereu um esforço menor da cidade, já que houve um bom equilíbrio entre os setores público e privado. As verbas foram compostas por 27% de doações de patrocinadores, 33,3% de vendas de direito televisivo, 2,1% licenças de uso de imagem gráfica dos Jogos, 18,6% de títulos em venda de bilhetes de loteria e moedas e selos comemorativos, 5,5% de vendas de entradas e apenas 9% de fundos públicos.
O argumento para sediar a competição, acendeu a tocha olímpica e permitiu uma nova cidade cosmopolita. O projeto urbanístico "Plan General de Ordenación Urbana Del Área Metropolitana de Barcelona", elaborado em 1976 por Oriol Bohigas, foi alavancado pelas Olimpíadas e contribuiu para a melhoria da qualidade de vida dos cidadãos de Barcelona.
Transportes
Por conta das Olimpíadas, houve uma série de mudanças no sistema ferroviário. A principal delas foi a modificação da estação França e seu acesso direto ao cabo de Glóries, que possibilitou a construção da linha costeira, que era a barreira que impedia a relação da cidade com o mar em toda a parte de Poblenou. O projeto ferroviário permitiu a criação de novos espaços urbanos, diminuindo a distância entre centro-periferia.
O aeroporto Prat ganhou mais dois terminais, o A e o C. Estes edifícios, caracterizados por uma estrutura dupla de vidro, abrigam os terminais de ponte aérea e vôos internacionais. Também foi levantado um corredor conectando os novos prédios aos antigos. E, para completar, o projeto do arquiteto Ricardo Bofill, concretizado pela construtora FOCSA, a construção de três triângulos dotados de passarelas telescópicas de acesso direto aos aviões. No ano passado, aproximadamente 30 milhões de passageiros movimentaram o Prat, três vezes mais do que em 1993. E este acaba de inaugurar um novo terminal, o T1. Com essa empreitada, o segundo maior aeroporto espanhol em tráfico aéreo elevou sua capacidade para 55 milhões de pessoas.
Os cinturões criados no núcleo urbano melhoraram o fluxo no transito local. Tanto o Ronda de Dalt, quanto o Ronda litoral foram projetados com uma estrutura dupla, formada por um tronco central, comunicando regiões distintas, ruas, bairros, as áreas centrais. Conforme dados do Ajuntamento de Barcelona, as novas vias permitiram a absorção do tráfego pela cidade, recebendo aproximadamente 230 mil veículos diários.
A melhoria e a adequação da infra-estrutura viária e de transportes públicos, incluindo metrô, ônibus e estacionamentos foi concluída com 41% do total da verba destinada também a telecomunicações e serviços ambientais. A cidade, que continua em constante transformação neste quesito, conta atualmente com a construção da nova linha 9 do metrô. "Um novo sistema de rede, mais flexível, fluido, útil e seguro", esclarece Alejandro Gimenez. Fora isso, a implantação do trem de alta velocidade (AVE), que aumenta a conectividade de Barcelona com a Europa.
Passeio Marítimo
Com a construção do quebra-mar na costa de Poblenou foram recuperadas as condições para o uso da água dos banhistas nas praias de Bogatell, Marbella, Somorrostro e Nova Icària. A superfície ampliada de seis a 18,5 hectares possibilitou a construção de um novo passeio marítimo de quatro quilômetros.
O Porto Olímpico foi um dos pontos determinantes da abertura da cidade para o mar. O projeto contou com 75% da nova superfície destinada para uso do público, repleto de comércios, restaurantes e entretenimento. No mesmo local, a ousada arquitetura do complexo hoteleiro de luxo com vista pa
ra o mar do Hotel Les Arts – uma das propostas paralelas ao campo público e que acabou sendo inaugurado após os jogos – edificado em uma torre de 153,5 metros de altura, 44 andares e 456 quartos. Ao total cinco mil novas acomodações fizeram parte do plano de hotéis em Barcelona. 18% da verba total para a estratégia de revitalização da cidade foi destinada a este setor. Em outubro deste ano, o W, mas conhecido como Hotel Vela, abriu suas portas oferecendo mais 476 dormitórios e mostrando que a Barcelona continua sendo um modelo de modernidade. O edifício arquitetado por Bofill ainda marca a missão urbana de promover uma extensão da parte sul do porto.
De Barcelona para o Rio de Janeiro
Um grande e único parque olímpico não esteve nos planos arquitetônicos. A capital da Catalunha optou pela desconcentração, ou seja, quatro instalações menores foram criadas também em cidades vizinhas, dentre elas o estádio de beisebol e o ginásio de basquete. Fora isso, houve o aproveitamento do parque esportivo local, que apenas sofreu as reformas necessárias. Esta idéia, sugerida ao Rio de Janeiro durante um seminário de urbanistas catalães em 1996, quando a metrópole carioca foi candidata para sediar os Jogos Olímpicos de 2004, parece ter sido abandonada. Segundo os urbanistas a distribuição das instalações, favorece o uso da cidade como um todo, equilibrando a região. Em 2007, durante os Jogos Pan-Americanos, grande parte dos parques esportivos foram concentrados no entorno da Barra da Tijuca. Para Alejandro Gimenez seria interessante que o Rio aproveitasse a experiência barcelonesa. "Se o poder público brasileiro estabelecer um mecanismo de participação, para que os habitantes possam ajudar a fazer a cidade que sonham, com instrumentos de integração pró-positiva e não só reativa, já é um grande passo para a transformação. Os novos espaços precisam ser convertidos em lugares que expressem seus cidadãos", diz.
O arquiteto e professor do Departamento de Urbanismo e Ordenação de Território da Escola Técnica Superior de Arquitetura de Barcelona, Manuel Franco, compartilha da mesma opinião. Ele que já esteve na "cidade maravilhosa" diversas vezes, acredita que essa é a oportunidade certa para que o lugar cresça no setor de infra e principalmente no âmbito social. "É de extrema importância a participação dos habitantes como voluntários e o desdobramento de centros e sedes devem ser efetuados implicando a realidade social existente, fazendo com que diferentes classes se vinculem ao projeto. Em Barcelona'92, por exemplo, o programa de voluntariado foi espetacular, assim como a decisão de implantação de diferentes sedes, não só na cidade e bairros, senão no entorno territorial, em toda a Catalunha e pontualmente no resto do país", afirma.
As 4.500 moradias erguidas na Vila Olímpica para receber os esportistas e participantes em 1992, foram vendidas após os jogos ao mercado imobiliário. Os habitantes ainda ganharam praças e parque restaurados ou novos, como o Escorxador, que abriga a espetacular escultura Dona i ocell de Joan Miró. "Uma coisa muito importante no discurso das grandes operações urbanas é não se esquecer do detalhe, das pequenas praças e ruas, onde acontece o dia-a-dia da vida coletiva. Acredito que essas pequenas intervenções, rápidas e baratas, podem acolher e projetar estupendamente a identidade de cidades extraordinária como Barcelona e Rio", sugere Alejandro Gimenez.
Segurança
Assim que o Rio de Janeiro foi eleito para receber as Olimpíadas de 2016, ganhando a candidatura de Madrid, a mídia espanhola não hesitou em questionar, discutir e principalmente deteriorar as questões da segurança local. Prova disso foram as 12 páginas publicadas na revista de domingo do jornal "El País", com o titulo "Rio de Janeiro: Cidade de Deus e do diabo". A impactante matéria aborda o ponto débil da cidade maravilhosa, a inseguridade. Durante a Barcelona Olímpica 21.116 pessoas integraram as forças de segurança, um plano sem precedente para evitar problemas de ordem publica ou terrorista.
Turismo – a palavra chave
Impossível não notar a quantidade de visitantes e moradores de distintos países que enchem as ruas da cidade, seja em temporada ou fora dela. Indiscutivelmente, Barcelona é do mundo e o mundo está em Barcelona. Mas será que isso não a deixa sem identidade? "Nunca algo desta magnitude faz com que o lugar perca sua identidade. A ilusão coletiva que se estabelece entre a cidadania faz com que a população se vincule ainda mais com a cidade. O acréscimo do fluxo de visitantes favorece o intercambio, a vontade de conectar e a oportunidade de apresentar a Barcelona a um cenário global", esclarece Manuel Franco.
Se esta é a chave para o desenvolvimento, depois da realização dos jogos de 92, foi promovido tanto o turismo, que segundo o informe da European Cities Monitor 2007, Barcelona é considerada como a quarta melhor cidade européia para implantar um negócio. "O turismo, como toda mescla social, enriquece a cidade. Cada tipo de turismo faz com que a cidade vá melhorando em aspectos como hotelaria, restauração de museus, instalações do porto e assim por diante. O último a incorporar-se em Barcelona é o turismo de cruzeiros. Como conseqüência grandes projetos de infra-estruturas estão sendo realizados, como a melhora do litoral, com a zona de banhos do Fórum e a futura transformação da frente do Porto Velho. Isso repercute favoravelmente na economia. O balance final é extraordinariamente positivo. Um fenômeno como este deveria ser motivo de aplicação para cidades como Rio de Janeiro, que tem aspectos muito parecidos a Barcelona e com a possibilidade de ofertar um imenso leque de opções no setor turístico, o que seria um forte input na economia, desenvolvimento e melhora de uma das cidades mais belas do mundo. Além disso, o Rio tem um patrimônio humano excepcional com uma vida urbana muito rica. As Olimpíadas só passam uma vez e se deve aproveitar seu imenso potencial. A regeneração urbana, a construção de infra-estrutura de transporte e seguramente preparar o local para um turismo de grande dimensão permanente e não estacional", finaliza Miquel Corominas i Ayala, doutor arquiteto e professor de urbani
smo da Universidade politécnica da Catalunha.
Fonte: Estadão