País surpreendido por desastre natural das proporções do que destruiu três cidades no Rio de Janeiro, com perto de mil mortos, perde o direito de insistir na fantasia do TAV, quando precisa concentrar recursos em obras prioritárias
Acoerência determina a reversão das prioridades. Como insistir no projeto do Trem de Alta Velocidade (TAV), ligando Campinas-São Paulo e Rio de Janeiro, diante de um desastre que provocou a morte de mais de 800 pessoas, deixou centenas de desaparecidos e milhares de desabrigados e desalojados? A sociedade está exigindo, das três instâncias de governo, responsabilidade na reavaliação das prioridades de obras, para prevenir e reduzir os efeitos de tragédias semelhantes e garantir a segurança da população, mediante planos que inibam construção em áreas de risco.
O volume de recursos da ordem de R$ 30 ou R$ 50 bilhões estimados para o Trem de Alta Velocidade, que priva de generoso financiamento parcial do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), teria maior utilidade se canalizado para as obras que possam minimizar os deslizamentos em encostas e reduzir o impacto das inundações. Afinal, a ligação SP-RJ tem sido suprida, de modo satisfatório, por rodovia (ônibus e veículos particulares) e pela Ponte Aérea.
Se inclinar-se para a realidade imposta pelos fatos, os recursos que estão sendo reunidos para o TAV seriam mais bem aplicados segundo a opção desejada pela sociedade. Assim, o Brasil estaria adiando, por algumas décadas, a montagem da vitrine de tecnologia avançada do TAV, compreensível em países desenvolvidos e de economia madura como o Japão e outros, da Europa, mas condenável em países que ainda estão sob a rubrica "em desenvolvimento".
Além do mais, os países que hoje dispõem do TAV, já resolveram, muitos antes de adotá-lo, os seus sistemas de transporte de massa baseados em trens, metrô, VLT e bondes, preservando o automóvel somente para as viagens de fim de semana ou para as férias. Hoje, Berlim, na Alemanha, por exemplo, se propõe a atingir o marco de 90% para o deslocamento da população, via transporte público de massa, composto por Ubahn, S-bahn, bonde articulado e ônibus.
Contradições brasileiras
As contradições que são observadas nas políticas públicas praticadas ao arrepio de uma racional hierarquia de prioridades sociais, no Brasil, não dizem respeito unicamente à questão do projeto do TAV.
Teoricamente, estamos nos preparando para sediar a Copa do Mundo de 2014 e a Olimpíada de 2016. Diversas arenas esportivas estão sendo reformadas ou construídas e há recursos disponibilizados para a melhoria de aeroportos, acessos viários e outras obras de infraestrutura.
Contudo, enquanto paralelamente ao início dessas obras, o Rio de Janeiro e outras regiões brasileiras, incluindo São Paulo, eram sacudidas por chuvas torrenciais, que provocaram irreparáveis perdas humanas e graves prejuízos materiais, vinha a informação de que ex-governadores de Estado e até viúvas desses ex-administradores, vinham recebendo ou requerendo polpuda pensão vitalícia por "serviços prestados". Além disso, os partidos políticos estariam cuidando de ampliar em cerca de 50% os seus recursos destinados pelo Tesouro para 2011, depois do aumento substancial que os parlamentares aprovaram para o próprio bolso, em Brasília, no começo do exercício legislativo.
Enquanto, nas três instâncias de governo, alegava-se que a culpa pelas mortes nos deslizamentos e nas inundações ocorridos, era das próprias vítimas, que fizeram suas moradias nas áreas de riscos nas encostas das montanhas ou nas várzeas dos rios, os administradores públicos espertamente omitiram que nada tinham feito para evitar as tragédias. Como se, ao longo dos anos, não tivessem fechado os olhos ao fenômeno da ocupação irregular daqueles terrenos.
Da mesma forma, eles ignoraram as previsões de instituições conceituadas que têm acompanhado as mudanças climáticas aqui e no mundo. E não consideraram os alertas de especialistas que vêm estudando o aquecimento global e vêm mostrando o aumento de temperatura, independentemente da controvérsia sobre as causas da emissão de CO2, gerando fenômenos climáticos extremos.
Nova prioridade
Uma nova prioridade, imposta pelas mudanças climáticas no conjunto das políticas públicas, refere-se à necessidade da contratação de empresas de engenharia para a elaboração de planos de prevenção contra os fenômenos naturais, seja no Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, Santa Catarina ou em outras regiões do País.
Programas de obras devem ser desenvolvidos tendo em conta esse novo enfoque das políticas públicas, com a expectativa de que a sociedade exija que tais obras sejam executadas a longo prazo e continuamente, sem a interrupção provocada pela mudança dos quadros da administração pública, a cada quatro anos.
A cidade de São Paulo registra tradicionalmente mais 400 pontos de alagamento. São, no geral, pontos críticos conhecidos há décadas pela população e pela prefeitura, mas que invariavelmente nunca são resolvidos, ao menos de modo satisfatório. E, quando reparados, vez ou outra voltam a ser inundados. Haja vista o exemplo das marginais dos rios Tietê e Pinheiros, onde o fenômeno é recorrente. Há tecnologias disponíveis nas prateleiras, bem como empresas de engenharia capacitadas para resolver esses problemas que, no entanto, prosseguem inconclusos.
A sociedade até pagaria, sem reclamações maiores, os impostos e taxas exorbitantes que lhes são cobrados, desde que houvesse retorno compatível do ponto de vista de oferta de serviços públicos de qualidade e de soluções para problemas que se eternizam e que se agravam na época das chuvas torrenciais. Mas, como está, a situação é insuportável. Isso explica, ao menos em São Paulo, o resultado da pesquisa dos Indicadores de Referência de Bem-Estar no Município (Irbem), que expõem o absoluto descrédito da maioria dos moradores da capital paulista para com instituições tais como a prefeitura, a Câmara Municipal e o Tribunal de Contas do Município.
Diante desses fatos aqui relacionados, estamos convencidos de que o administrador público apanhado na ignorância do que a sociedade pensa e reivindica, deveria ser imediatamente destituído por ela.
Além disso, achamos que deixou de ser hora de pensar no TAV. A hora é de cuidar daquilo que é essencial à operação das cidades brasileiras, onde vivem mais de 80% da população do País. É para essa população que devem se voltar as atenções com o legado da Copa do Mundo e da Olimpíada e com as demais obras de infraestrutura preconizadas, no longo prazo, para a mov
imentação do País.
Fonte: Estadão