Há algum tempo registrei na revista ocorrências provocadas em fundações de edifícios residenciais. Episódios recentes de prédios afetados em sua estrutura por construções contíguas me trazem a crônica à memória. Repasso-a aos leitores.
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Não foi em Macondo, aquela aldeia de vinte casas de barro e taquara de Garcia Marques, onde essas coisas aconteceram. Foi em Moema, bairro de classe média da Paulicéia. Ali, os moradores começaram a se dar conta de que o terreno afundava. E os diálogos – ou monólogos – confirmam as linhas do realismo fantástico:
"Estamos afundando".
"De repente vi a minha casa entortar".
"E então senti a movimentação das águas sob os meus pés".
"Não teve jeito. Tive de colocar antiderrapante em toda parte para a minha mãe não escorregar".
A insegurança tomou conta de moradores de várias ruas. A qualquer momento uma casa -ou morador – correria o risco de sumir nos buracos. Ou de ser vítima de escombros, pois as residências apresentavam rachaduras. O jeito foi a construtora, que erguia um edifício residencial na área, patrocinar a mudança de alguns moradores para hotéis da região e seus responsáveis anunciarem que "estão abertos ao diálogo". A obra chegou a ser embargada, sendo liberada depois.
O caso, para utilizar uma palavra mofada pelo uso, é emblemático do que ocorre em São Paulo e em outras regiões, onde a fúria imobiliária dispensa cuidados elementares na hora de colocar edifícios em pé. A sobrecarga do volume edificado em uma área não é examinada previamente às escavações que vão ser feitas.
O planejamento é negligenciado sob todos os aspectos: a sobrecarga de serviços, como abastecimento de água e esgotamento sanitário; volume de carros que será acrescido ao volume convencional do bairro e respeito às condições dos outros edifícios e das residências tradicionais já existentes. Constrói-se como se a vizinhança não existisse. O resultado é o que agora se constata: comprometimento de prédios próximos.
Representantes da empresa atribuem os problemas às construções antigas, que não tinham fundação consistente ou foram feitas de forma errada. Mas, se eles sabiam disso, por que não se entenderam previamente com moradores? E por que não adotaram as providências necessárias para prevenir os estragos? A engenharia, a velha engenharia brasileira, recebeu mais um golpe – o golpe da irresponsabilidade explícita. E as vítimas passam a ser responsáveis – e acusadas – por existirem.
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O texto, como se vê, não perdeu atualidade. Os moradores de um edifício, na Barra Funda, que se deslocou por causa de movimentação no solo atribuída à construção de um prédio ao lado, que o digam. Retirados de casa pela Defesa Civil, se veem atônitos e sem rumo. E bem aqui, onde não há terremotos.
Fonte: Estadão