Congonhas, nove meses depois

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Continuam na memória da população e na história da aviação civil brasileira, as imagens do Airbus-A320 da TAM (vôo 3054), quando a aeronave, no final da tarde do dia 17 de julho do ano passado, deslizou na pista molhada, transpôs a Avenida Rubem Berta, em São Paulo, projetou-se contra um prédio daquela empresa e incendiou-se matando 199 passageiros.

Foram atingidos, também, centenas de familiares, amigos, colaboradores e o conjunto da população atônita diante da tragédia de tal dimensão. No primeiro momento, a expectativa era de que a comoção da sociedade ecoasse junto às autoridades – inclusive o Ministério Público Federal – para que uma revisão radical das condições operacionais do aeroporto se consumasse.

Mas o que se temia, acabou acontecendo: enquanto os usuários de Congonhas entram em pânico a cada pouso e decolagem, o aeroporto continua a funcionar, como se estivesse dotado de todas as condições de absoluta segurança, e não estivesse encravado num ambiente extremamente urbanizado. É, conforme a figura de linguagem de um arquiteto, um grande porta-aviões a operar num mar de edificações.

O que fica é a revolta e os depoimentos dos órfãos da tragédia. Em sua edição de 26 de março último, a revista Exame traz depoimento do empresário Bruno Caltabiano, 64 anos, fundador de um dos tradicionais grupos de revenda de automóveis do País. Desde o ano 2000, conforme narra a publicação, o grupo passara a ser dirigido pelos dois filhos do empresário, João e Pedro, de 37 e 40 anos.

O grupo contava também, à época, com a parceria do grupo de revenda de automóveis americano MacLarthy. Nas mãos dos filhos e com o apoio do grupo americano, a Caltabiano cresceu a tal ponto, que pretendia abrir capital na bolsa de valores. Mas veio a tragédia. Os herdeiros João e Pedro estavam no vôo 3054, da rota Porto Alegre-São Paulo.
O empresário Bruno Caltabiano, que deixara os negócios nas mãos “dos meninos”, passando a atuar apenas como consultor, teve de arregaçar as mangas e começar tudo de novo. É dele o seguinte depoimento: “Desde o acidente, me sinto como alguém que usa uma máscara. É como se eu estivesse em carne viva, ao mesmo tempo que tento parecer bem para os que estão ao meu redor”.

No mesmo desastre morreu também o empresário Atílio Bilíbio, que a exemplo de outros, se incluía como responsável pelas atividades econômicas que sustentam o País. Bilíbio, fundador e presidente da fabricante de estruturas metálicas Medabil, com sede no Rio Grande do Sul, fazia uma viagem de trabalho a São Paulo. A Medabil foi eleita, pela Revista O Empreiteiro, como uma das Empresas de Engenharia do Ano de 2004.

O desastre com o avião da TAM veio na seqüência de uma série de ftos que comprometiam a aviação brasileira: o desastre com o avião da Gol (vôo 1907), que se chocou com o jato Legacy da Embraer e caiu na selva no norte do Mato Grosso, matando 154 pessoas e, em seguida, a crise dos controladores de vôo, que tumultuou os aeroportos do País.

No auge do estresse que tomou conta da população e, sobretudo, dos usuários, o presidente Lula da Silva soltou, no ar, uma frase de efeito, dizendo que “não sabia” que o caos aéreo brasileiro atingira aquela dimensão. E disse, para surpresa do País, que o Ministério da Defesa criada no dia 10 de junho de 1999, pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso, nunca existira. Tanto assim, que substituiu o ministro Valdir Pires, que vinha respondendo por aquele ministério “fictício”, pelo ministro Nelson Jobim, que deveria cuidar do ministério “real”. A partir daí caiu a diretoria da Associação Nacional de Aviação Civil (Anac) e toda a cúpula da Infraero foi substituída.

Na época prometeu-se concluir a execução do grooving (ranhuras) na pista de Congonhas, para melhorar o escoamento de água e aumentar a segurança nos pousos das aeronaves. Esse trabalho foi realizado, simultaneamente com a redução do número de pouso e decolagem e a transferência dos aviões maiores para os aeroportos de Cumbica e de Viracopos. Ao mesmo tempo, passou a ser estudada uma área de escape para aumentar a segurança naquelas operações.

Enfim, prometeu-se muito, o tempo passou e, hoje, Congonhas funciona como sempre funcionou. Somente, vez ou outra, familiares das vítimas da tragédia mudam o cenário local.

Invadem o saguão do aeroporto e protestam contra a inação das autoridades e contra a empresa, por causa das indenizações que ainda não foram pagas.

Como nada ali se alterou, os riscos de novos desastres e mortes continuam. Congonhas prossegue, assim, como objeto de discussões entre arquitetos, urbanistas, administradores públicos e representantes da sociedade, em especial dos moradores da região que convivem com a poluição provocada pelas operações das aeronaves de grande porte. As indagações que se repetem se referem à inadequação do aeroporto em área tão densamente urbanizada, os horários de desembarque de passageiros, a poluição que ele provoca e os riscos de novas tragédias.

Do glamour ao caos

Congonhas já viveu uma época de glamour. Nos anos 50 e 60, conquanto fosse considerado o aeroporto mais movimentado do País, ele não oferecia maiores riscos para a cidade. Por ali passavam personalidades tais como Juscelino Kubitschek e Marlene Dietrich; Pelé e a rainha Elizabeth, da Inglaterra; e toda a fauna que freqüentava os salões da elite paulistana.

Mas a cidade, sem que a administração pública tomasse qualquer medida do ponto de vista urbanístico, foi se aproximando e sufocando o aeroporto. Até que no entorno e na rota dos pousos e decolagem começaram a ser construídos grandes edifícios. O trânsito aumentou e, com a abertura das avenida Rubem Berta, Washington Luiz e Bandeirantes, o aeroporto ficou confinado, tornando-se o que o arquiteto Paulo Bastos define como um “porta-aviões num mar de edifícios”. Por isso, se pergunta: o que fazer com Congonhas?

As respostas variam. Enquanto alguns acham que as operações de pouso e decolagem devem ser gradualmente reduzidas, outros consideram que a infra-estrutura ali construída é valiosa demais para que o aeroporto seja desativado. Outros entendem que devem ser construídos novos aeroportos e ampliados os de Cumbica, Viracopos e Campo de Marte, para que Congonhas seja destinado apenas a vôos locais e regionais.

Enquanto a discussão prossegue, o medo toma conta dos usuários, que só utilizam Congonhas por falta de opção. A seguir, depoimentos de arquitetos e representantes da sociedade sobre o que fazer com o aeroporto:

Dirigente sindical teme novas tragédias em Congonhas

“O aeroporto de Congonhas não tem mais jeito. Eu nem gosto de falar sobre esse assunto, porque me irrita muito.
Não há nada que se possa fazer para melhorar suas condições de segurança, considerando seu perfil de operação. Os níveis de insegurança atingiram seu ápice no acidente com a aeronave da TAM. E outros acidentes tão graves quando esse podem acontecer a qualquer momento.” O desabafo é do diretor de Imprensa e Cultura do Sindicato Nacional dos Aeroviários, José Jesus Araújo.

Para o líder sindical, a única alternativa para congonhas seria transformá-lo em um aeroporto com características regionais, com restrições de rotas, tamanho de aeronaves, número de pousos e decolagens. Jesus acredita que foi um erro a suspensão das restrições e a retomada de vôos regulares com escalas e conexões em Congonhas. “O acidente com o Airbus da TAM reforçou a necessidade de priorização da segurança nos aeroportos. Mas com a suspensão das medidas restritivas, a conclusão a que chegamos é de que praticamente nada foi feito nesse sentido.”

Jesus admite, no entanto, que muito pouco pode ser feito pela entidade, no âmbito legal. “Temos acompanhado o que está sendo feito em termos de obras, cobrando intervenções mais radicais, mas legalmente não temos poder para intervir no processo. Nos vemos em meio à troca de acusações e divergências de opiniões entre diversos setores do governo, o que só aumenta nossas dúvidas sobre a segurança do transporte aéreo no país. Cabe à sociedade se posicionar de forma mais contundente”, diz Jesus.

De acordo com levantamento realizado pelo sindicato, várias questões agravam a falta de infra-estrutura nos aeroportos. Entre elas estão: a escassez de profissionais estratégicos para a segurança de vôos, de mecânicos de manutenção na TAM e na Gol. Há um número insuficiente de despachantes técnicos nas companhias de aviação, o que ocasiona estresse aos poucos funcionários existentes, que podem incorrer erros que prtovocar novos acidentes graves.

Na prática, nada foi feito

Antônio Cunha, coordenador do Comitê de Assuntos Aeroportuários do Defenda São Paulo

A posição da associação Defenda São Paulo é de manutenção do Aeroporto de Congonhas, mas com restrições. É um aeroporto antigo, obsoleto, pequeno, com erros de projeto, e riscos de segurança não corrigidos, apesar das tragédias de quedas de avião, que somam mortos.

A única ação adotada até aqui foi a redução do número de vôos de 48/h para 34/h., insuficiente para garantir a segurança. Mesmo assim, o nível de operação ainda está errado.

As aeronaves que operam ali são muito grandes. Na prática, nada foi feito para corrigir os defeitos de segurança e reorganização do aeroporto, do ponto de vista ambiental, e do plano diretor.

As autoridades nada dizem. Não têm respeito pela sociedade. Tudo é feito a portas fechadas, apenas com as empresas operadoras do aeroporto. Os moradores não são ouvidos. São ignorados. A movimentação realizada foi apenas uma encenação em decorrência do acidente. As decisões envolvem os governos federal, estadual e municipal. A revista O Empreiteiro publicou, inclusive, estudo sobre a ocorrência de 10.800 acidentes em aeroportos, em que Congonhas é considerado o mais perigoso da história.

Reduzir o tráfego aéreo

Lygia Veras de Freitas Horta, presidente da Associação dos Moradores e Amigos de Moema (Amam)

O meu pai, Valderico Veras, era engenheiro da Secretaria de Viação e Obras Públicas e, na década de 1930, participou da fiscalização da construção do Aeroporto de Congonhas. Eu era bem criança e lembro que ele me levava, às vezes, até a obra. Era uma terra vermelha e o local ficava bem distante do centro da cidade.

Com o tempo, esse isolamento foi eliminado e a cidade passou a abranger o aeroporto, dando origem aos problemas contra os quais a Associação dos Moradores e Amigos de Moema (Amam) luta.

Nossa principal reivindicação continua sendo a diminuição do tráfego aéreo em Con­gonhas. Isso contribuiria tanto para a redução da poluição sonora e ambiental como para o aumento da segurança e do conforto dos moradores dos bairros vizinhos.

Recentemente, a volta das conexões de vôo a Congonhas nos aborreceu muito, pois, conseqüentemente, provocou o aumento do tráfego aéreo. O ministro Nelson Jobim, que inicialmente havia proibido isso, acabou por ceder às pressões das companhias aéreas e voltou atrás na sua decisão.

Além disso, é bom destacar que o aeroporto tem funcionado durante a noite e a madrugada, desrespeitando o acordo que previa a interrupção das atividades das 23h às 6h. O sono dos moradores dos bairros circunvizinhos é interrompido pelos ruídos provocados pelos pousos ou decolagens.

A insegurança da cidade

Paulo Bastos, arquiteto

Congonhas foi construído a 25 km do centro da cidade de São Paulo, quando o anel urbano da cidade atingia o raio de 12 km a partir da região central. Ou seja, o aeroporto foi idealizado sob condições ideais, na época, de segurança do pouso das aeronaves, além do aspecto ambiental de ruídos e da poluição. Mas a cidade avançou sobre a área do aeroporto, surgindo uma densidade de edifícios altos e áreas residenciais no seu entorno. Isso criou uma situação de constante risco que, pode-se dizer, gerou até poucos acidentes em vista da dimensão do problema. O que os comandantes de vôo mais temem ali, com relação à segurança, são as correntes de ar descentes e ascendentes de arco, além dos pássaros, uma vez que hoje praticamente não há alternativa de escape em caso de acidente.

O ideal é que Congonhas volte a funcionar como na década de 1980, quando era feita a movimentação de pequenos aviões. Esse tipo de uso poderia torná-lo mais rápido e eficiente. Além da insegurança atualmente, é importante ressaltar a poluição provocada pela descarga de gases tóxicos destes grandes aviões e o ruído insuportável para quem habita abaixo das rotas das aeronaves. Como se pode pensar em criar uma área de escape, manter e incrementar o Aeroporto de Congonhas em vista da condição de segurança da cidade? De que adiante construir um estacionamento subterrâneo se muitas vezes não há nem como chegar com segurança e rapidez no aeroporto por conta dos congestionamentos? Claro que há uma pressão do comércio e da área de serviços locais para que ele fique lá mesmo. Mas é inconcebível manter um aeroporto para atender ao conforto de um grupo minoritário de usuários ou comerciantes, desprezando o problema de segurança de toda uma cidade.

Sobrecarga de funções

João Valente Filho, arquiteto

O aeroporto de Congonhas está implantado na região sul de São Paulo há muito tempo. No seu entorno instalou-se toda uma infra-estrutura urbana que só tem sentido com o pressuposto da própria existência do aeroporto. Se ele for desativado, ocorrerá a desorganização dessa infra-estrutura e sua migração para outro ponto da cidade que poderá não estar preparada para absorver tudo isso. Além disso, com a perda de sua função, surgiria a necessidade de se dar uma destinação para a atual área em que está o aeroporto.

O fato é que Congonhas está desempenhando uma função muito acima da sua capacidade. Está sobrecarregado. O atendimento das necessidades de um centro metropolitano como São Paulo nunca poderia ser feito por um único aeroporto. A região demanda um amplo sistema aeroportuário. Nesse sentido, é preciso definir se o aeroporto principal será o de Guarulhos ou se haverá necessidade de se construir mais aeroportos no interior do estado. Só a partir de um planejamento global é que se poderão definir as funções e o dimensionamento de cada aeroporto.

De qualquer forma, toda solução passa pela necessidade de se interligar e integrar todos os recursos aeroportuários com um sistema eficiente de transporte de cargas e passageiros. Hoje, um dos grandes problemas de Congonhas é que ele está totalmente desarticulado dos aeroportos existentes, como Cumbica, Viracopos e, até mesmo, Campo de Marte, que tem terreno com área total maior do que a de Congonhas e poderia absorver, por exemplo, o tráfego de pequenos aviões.

São Paulo precisa de mais aeroportos

Alberto Botti, arquiteto

São Paulo não pode dispensar o Aeroporto de Congonhas. Ao contrário, a cidade precisa é de mais um aeroporto, além de readequar e utilizar ainda mais o Campo de Marte. Não dá para pensar em desativar um aeroporto nos dias de hoje. Há, claro, o problema do ruído e da poluição. Mas é preciso investir na tecnologia dos equipamentos e evolução das aeronaves para mitigar os problemas de segurança e de poluição.

Pode-se investir em outros sistemas de transporte. Fala-se muito no trem expresso São Paulo-Rio. Mas não vamos nos enganar: uma cidade como São Paulo precisa é ter mais aeroportos. É preciso ainda discutir a questão do tamanho das aeronaves. Por que elas estão tão grandes, acima da capacidade de operação dos aeroportos? Isso precisa ser discutido de uma maneira global. O problema da dimensão das pistas não é só de Congonhas, mas de diversos outros aeroportos do mundo.

Pensar em construir aeroportos em locais distantes é totalmente inviável, pois eles são um grande pólo de atração econômica. Olhe o caso do Aeroporto de Guarulhos, em que a área destinada a uma terceira pista foi invadida. Essa é uma realidade do nosso País.

Falta um estudo aprofundado sobre o que fazer

Luiz Célio Bottura, consultor em engenharia urbana

O que precisa ficar bem claro é que ainda não sabemos fazer cidades. Tudo o que é feito de infra-estrutura deveria ter, como contrapartida, o controle da cidade para preservar o espaço construído.

Os aeroportos de Congonhas e de Cumbica foram engolidos pelo avanço da cidade. O de Viracopos corre o mesmo risco. As rodovias, salvo a Bandeirantes, foram engolidas. O metrô não soube considerar a cidade. Uma infra-estrutura qualquer tem de ser analisada sob o ponto de vista do que ela traz de bem para a sociedade e não como bem individual.

É preciso saber o que planejar e saber como lidar com o “gerenciamento do antes”. Gerenciar a obra, o projeto e o planejamento, muita gente sabe. Mas, falta quem saiba gerenciar o “antes”. Comparando com a medicina, na engenharia falta clínico geral.

Antes de se decidir por fazer uma obra, é preciso analisar as suas conseqüências para o entorno urbano. Fazer cidades implica ações que preservem as infra-estruturas e a área a ser ocupada. Nós não preservamos a infra-estrutura representada pelo Aeroporto de Congonhas e, tampouco, preservamos o seu entorno.

O Aeroporto de Congonhas careceria de melhor sistema de transporte público e individual. Preocuparam-se em fazer estacionamento e, para isso, implantaram uma passagem de nível errada, porque ela tem logo no início uma conversão forte que provoca a diminuição do tráfego e desencadeia grande acúmulo de veículos, refletindo na avenida de acesso.

Entre as conseqüências da existência do aeroporto, está a ocorrência de inundações freqüentes ao longo da Bandeirantes, por causa do córrego da Traição, que é o maior captador da água proveniente das pistas. E, depois da recuperação do pavimento e a introdução do grooving, o volume e a velocidade com que a água é despejada no córrego aumentaram significativamente e a avenida passou a ficar alagada com maior freqüência.

Não adianta ficar discutindo sobre a adequação do cumprimento da pista. O que se deveria fazer é limitar o tipo de aviões que pousa lá. Para isso, seria muito importante uma fiscalização competente, que é outra coisa que nós também não sabemos fazer.

Nenhum dos problemas decorrentes do aeroporto tem solução a curto prazo. O grande passo no momento seria organizar um grupo multidisciplinar de especialistas sérios para realizar um estudo aprofundado sobre o que fazer com o Aeroporto de Congonhas.

Fonte: Estadão


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