São Paulo sofre com a falta de planejamento há longa data na área de drenagem. O último plano diretor é de 1998 e, até agora, o poder público respondeu apenas com medidas paliativas frente às enchentes
Marisa Marega – São Paulo (SP)
Quando uma cidade vai sendo construída, uma das preocupações é que sua administração seja capaz de responder às necessidades básicas dos cidadãos que nela vivem. Não é o que ocorre em São Paulo onde um verão sim e outro também, as enchentes continuam provocando mortes, deslizamentos, alagamentos de bairros inteiros e prejuízos materiais incalculáveis. A razão desse inferno sazonal está na ausência de planos que deveriam cuidar do sistema de drenagem da cidade e mantê-lo funcionando.
A macrodrenagem tem seus problemas normalmente associados à perda de capacidade ocasionada pelo acúmulo de lixo e sedimentos, o aumento da vazão de córregos e rios decorrentes do acréscimo da área impermeabilizada na bacia hidrográfica, ao processo desordenado da urbanização com ocupação das várzeas de córregos e rios e as canalizações dos mesmos.Os especialistas inidicam que o sistema de drenagem precisa ser continuamente revisado para corrigir os problemas associados a essa perda de capacidade.
Só que na prática isso não ocorre. O professor Arisvaldo Vieira Méllo Jr., do Departamento de Engenharia Hidráulica da Escola Politécnica da USP, explica:" A cidade de São Paulo abriga áreas densamente povoadas compostas por subsistemas (habitacional, tranporte, vias públicas, saneamento,distribuição de energia, telefonia) que se entrelaçam e formam uma malha extremamente intrincada de interdependências que dificultam as soluções para o controle das inundações, a identificação e o gerenciamento de áreas de risco, bem como a mitigação dos seus efeitos. Por esta razão, o controle de inundações e a drenagem urbana não é apenas um problema de engenharia. Estão envolvidos aspectos legais, institucionais, administrativos e ideológicos que devem ser fruto de um gerenciamento conjunto dentro de uma política pública de drenagem em ambiente urbano.
Além das medidas estruturais que tratam de obras de hidráulicas e de infraestrutura urbana, devem ser consideradas as medidas não estruturais tais como: articulação institucional entre todos os interessados; planejamentos abrangentes em extensão e conteúdo; adoção de normas legais viáveis e que sejam efetivamente aplicadas; expansão dos sistemas de monitoramento e de alerta contra inundações e deslizamento de encosta; desenvolvimento de tecnologias mais apropriadas de critérios para planejamento e projetos das obras de combate às inundações; proposição de políticas de uso e ocupação do solo que diminuam a vulnerabilidade das populações localizadas em áreas de alto risco; mapeamento de áreas de riscos de inundação, etc".
Se o diagnóstico aponta as soluções porque elas não são colocadas em prática?
Para responder é necessário saber que o último Plano Diretor de Macrodrenagem data de 1998. Segundo Julio Cerqueira César Neto, especialista em recursos hídricos do Instituto de Engenharia, o problema começou ali. "Naquele plano, o governo do Estado, embora ciente de que as vazões previstas nesse projeto já estavam superadas em 25% decidiu manter o projeto e executar a 2ª fase da calha do rio Tietê com as dimensões previstas, desconsiderando outras alternativas, e pensou que iria resolver o problema com a construção de 134 piscinões. A partir daí, foram deixadas de lado quaisquer outras intervenções no sistema que não fossem piscinões.
Passaram-se 13 anos, foram construídos apenas 44 piscinões e já existe consenso de que não existe espaço para a construção dos outros 90. A ampliação da calha também foi concluída. Hoje as vazões de suporte já estão superadas em 53%, com o agravante de que após a sua inauguração em 2005 não foi praticamente desassoreada, o que eleva essa defasagem para 133%. Hoje a vazão de projeto no Cebolão para T = 100 anos é de 1.750 m³/s e a capacidade da calha assoreada é de 700 m³/s".
O engenheiro continua o raciocínio: "Ainda como consequência da equivocada decisão de 1998, o Tamanduateí, cujo canal construído ao longo da Av. do Estado tem capacidade para 487 m³/s, deveria suportar hoje na foz do Tietê 878 m³/s. Para fechar esse quadro, é importante lembrar que há 90 anos todos os estudos feitos destacaram a fundamental importância da preservação da parte da bacia à montante da barragem da Penha, porque se isso não acontecer, as vazões da calha do Tietê no Cebolão poderão atingir 2.400 m³/s. Como agravante, a urbanização dessa área continua a ocorrer de forma totalmente desordenada como aconteceu com o resto da região", afirma.
Em resposta, a Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano (SMDU) informa que desde novembro a Prefeitura de São Paulo e a Fundação Centro Tecnológico de Hidráulica (FCTH), ligada à USP, trabalham em conjunto para desenvolver um novo Plano Diretor de Macrodrenagem para a cidade. Segundo a assessoria: " O objetivo do trabalho é formalizar as principais diretrizes e um planejamento das intervenções necessárias nas respectivas Bacias Hidrográficas. Aliando manejo das águas pluviais, melhores soluções tecnológicas disponíveis, legislação, obras estruturais, de drenagem e um resgate de condições naturais, com a implantação de parques e renaturalização de córregos. O Plano Diretor de Macrodrenagem vai buscar mitigar as principais causas dos alagamentos no município, no médio e longo prazo. A previsão para a conclusão dos estudos é de dois anos, para então, estender sua abrangência para todo o município, sempre pensando de forma integrada e buscando um melhor aproveitamento dos investimentos".
Enquanto o plano em estudo não fica pronto, a solução encontrada é ir remediando situações críticas. A assessoria da SMDU dá notícia de que:" Já foram investidos quase 100 milhões de reais na implantação dos parques lineares, iniciada em 2007. Cerca de 20 deles estão atualmente em diferentes estágios de implantação. Hoje são 11 já implantados. Além destes, haverá também o parque linear urbano Várzeas do Tietê. O número de parques também dobrou, contribuindo para a ampliação da capacidade de absorção de água das chuvas".
A Secretaria cita ainda outros investimentos: " O combate a enchentes inclui ainda as ações e obras executadas no sistema de drenagem e
em áreas de risco pelo programa de urbanização de favelas da Secretaria de Habitação. Já são 152 grandes obras realizadas desde 2005 no sistema de drenagem pela Secretaria de Infraestrutura Urbana e Obras, sendo que 122 estão concluídas. Entre elas estão as obras contra enchentes nas bacias dos córregos Aricanduva e Pirajussara e no Jardim Pantanal que, prioritariamente, atendeu a região do bairro Jardim Romano, em São Miguel Paulista, onde se destacam as construções de um grande dique e de um reservatório, que será avaliado como alternativa para outros bairros da região.
Em parceria do Governo do Estado com a Prefeitura, a cidade ganhou mais dois piscinões – Sharp e Anhanguera. Agora, São Paulo tem 19 piscinões em operação, todos com mais de 90% de sua capacidade (5,3 milhões de m³) de armazenamento de água garantidos por manutenção e limpeza constantes. Há mais um em construção, o Piscinão Olaria".
Com todo esse investimento informado, a situação no verão de 2011 continuou a mesma para a população. O Jardim Romano e o Jardim Pantanal alagaram como em verões anteriores.
O que os estudiosos afirmam é que não adianta mais executar soluções paliativas. O conselheiro do Instituto de Engenharia, especialista em recursos hídricos, José Eduardo Cavalcanti, lembra: Este assunto volta à tona em razão da insuficiência das soluções previstas no plano diretor que tem sido implantadas para o controle das cheias, como o rebaixamento da calha do rio Tietê (já concluída) e a disseminação de reservatórios de retenção("piscinões") que objetivam reduzir picos de descarga e retardar a chegada dessas vazões aos cursos de água. É importante frisar que faltam ainda 90 reservatórios a serem implantados, sendo que grande parte deles enfrenta dificuldades uma vez que não existem áreas adequadas nos locais previstos.
Soluções emergenciais como as anunciadas recentemente pelo governo estadual , dentre as quais a construção de diques em determinados trechos às margens do rio Tietê, polders no Aricanduva e canais de circunvalação na região da barragem da Penha, são evidentemente necessárias, embora paliativas no atual contexto.É oportuno, pois, retomar os estudos de desvios de cheias,visto que as inundações recorrentes que tem assolado a cidade não mais poderão ser justificadas como meramente episódicas".
Corroborando essa opinião, o engenheiro naval Geert Prange, da Escola Politécnica da USP veio a público em carta aos jornais dizer que está estupefato com a "solução" anunciada pelo governo do Estado. " Estupefato pois as obras contemplam também a instalação de dois reservatórios com capacidade de um milhão de m³. Esse volume é totalmente inócuo. Basta uma chuva de 10mm sobre uma área de 10kmx 10km(100km²) para se atingir esse volume.
Sabemos que a realidade paulistana é muito pior. Chuvas de 70 mm já ocorreram muitas vezes sobre São Paulo, cuja área urbana é muito maior.O que farão os moradores? Insisto que a solução apontada coincide com o diagnóstico do professor de engenharia hidráulica Julio Cesar Cerqueira Neto: é preciso drenar as águas pluviais da região metropolitana para o estuário de Santos. Seja por túnel, como propõe o professor, seja por sifonamento, que é a minha proposta.O resto é mero paliativo ou engodo", escreveu.
Procurado para entrevista, o professor Geert Prange explicou o método do sifonamento." É como se fosse um oleoduto, com tubulação maior. Na parte de baixo, provocando o vácuo, o sifão suga a água que está na região metropolitana e joga no estuário de Santos, no litoral. O rio Tietê, todos concordam, já está saturado. Temos que fazer como na Cidade do México, onde cavaram túneis que joga o excesso de água no mar e não há mais enchentes na capital". (ver ilustração)
Microdrenagem
Apesar de variadas soluções sugeridas pelos especialistas, para a população a realidade é que até aqui a Prefeitura e o governo do Estado não deram resposta ao problema.
Na área de microdrenagem, o conjunto que compõe vias, sarjetas, meio-fio, bocas de lobo, conexões, poços de visitas e condutos forçados, a situação não é melhor. O sistema deveria coletar e conduzir a água pluvial até o sistema de macrodrenagem, retirar a água pluvial dos pavimentos das vias públicas, evitar alagamentos, oferecer segurança aos pedestres e motoristas e evitar ou reduzir danos. Mas os moradores da região metropolitana sabem que na prática as calçadas e ruas enchem d´água com cinco minutos de chuva.
Os problemas relacionados à microdrenagem como erosão urbana, assoreamento, alagamentos, enchentes, inundações e problemas de saúde delas decorrentes apontam para a deficiência na interface com o sistema de macrodrenagem. Estudo do Departamento de Engenharia Hidráulica e Sanitária da USP aponta: " Os sistemas normalmente são analisados separadamente, em vez de serem estudadas as bacias como um todo. Isso provoca problemas na interface dos dois sistemas pois muitas vezes as águas coletadas pela microdrenagem desembocam diretamente em um corpo d´água com uma velocidade maior que o natural e pode sobrecarregar o sistema de macrodrenagem. Ou seja, o problema não foi solucionado, apenas foi transferido de montante para jusante."
A prova do que foi mostrado no estudo é que a Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano (SMDU), que respondeu pelo sistema de macrodrenagem, indicou a Secretaria das Subprefeituras para responder sobre a microdrenagem. Ou seja: cada um na sua.
Colocada diante das questões levantadas pelos especialistas, a assessoria da Secretaria das Subprefeituras respondeu: "O sistema de drenagem da cidade é composto por 19 piscinões; 400 mil Bocas de Lobo; 57 mil Poços de Visitas (da Prefeitura); 2.850 km de Galerias e Ramais e 281 córregos na cidade – extensão de 1.216 km (500 km canalizados, sendo 450 km fechados e 50 km abertos). Alguns desses equipamentos são limpos diariamente e todos passam por vistorias rotineiras, além de manutenções quando necessário".
E a resposta seguiu enumerando ações protelatórias: "Em 2010 foram retirados dos piscinões mais de 124,1 mil m³ de detritos, para que estejam sempre com plena capacidade de captação das águas das chuvas. Além disso, as operações Cata-Bagulho utilizam caminhões e equipes das subprefeituras para recolher materiais inservíveis, como móveis velhos. A ação busca evitar o descarte irregular destes detritos, que prejudica o funcionamento do sistema de drenagem nos dias de chuvas.
As 31 subprefeituras, no ano passado, realizaram cerca de 800 operações, que recolheram aproximadamente 22 mil toneladas de material.A Prefeitura tem intensificado as limpezas em todo o s
istema de drenagem. Os investimentos em obras de drenagem e na manutenção do sistema são ampliados ano a ano. Em cinco anos os valores foram quintuplicados. Em 2009, foram investidos R$ 309 milhões.
Além disso, a Prefeitura desenvolve uma série de medidas para combater o descarte irregular de entulho na cidade, que também contribui para minimizar ou evitar o entupimento de bocas de lobo e galeiras. Um delas foi o aumento da multa de R$ 500 para R$ 12 mil quando há despejo irregular de lixo e entulho em vias públicas".
Continuando a resposta, a Prefeitura lembra: "No dia 5 de novembro de 2010, foi publicado um decreto que define novas regras para os grandes geradores de resíduos sólidos. Os estabelecimentos e prédios comerciais que geram diariamente acima de 200 litros de resíduos e prédios mistos que produzem acima de 1.000 litros são responsáveis por dar a destinação adequada para o lixo. A fiscalização é rotineira e neste ano, em toda a cidade, foram aplicadas até o momento 2.167 multas a Grandes Geradores de Resíduos, lixo colocado na calçada fora de horário e descarte irregular".
Na área de permeabilidade a Secretaria informa:" Aumentou o número de parques que representam mais de 25 milhões de m² de áreas verdes na cidade para tornar o solo mais permeável. Cerca de 20 parques lineares estão atualmente em diferentes estágios de implantação. Hoje são 11 já implantados. Além destes, em breve São Paulo terá o maior parque linear urbano do mundo: O Várzea do Tietê".
Mais realista quanto à real situação dos sistemas de drenagem por trabalhar há mais de 25 anos na área, o engenheiro e ex-diretor do Departamento de Projetos de Drenagem da Prefeitura Municipal de São Paulo, Pedro Algodoal, diz que existe apenas um trabalho de diagnóstico realizado na gestão de Marta Suplicy, que foi concluído." Foram mapeadas e analisadas as galerias existentes em regiões de enchentes, apontada a situação de conservação, os danos constatados, o nível de assoreamento e as soluções estruturais para sua recuperação".
E aponta o que foi encontrado na radiografia da microdrenagem de São Paulo:" Na área central da cidade o maior problema está nas galerias antigas, com seção insuficiente para escoar as vazões atuais e com uma situação precária estruturalmente. As soluções podem ser a recuperação do sistema existente, a construção de galerias adicionais (chamadas galerias de reforço, geralmente em túnel) ou a construção de piscinões."
Já na área periférica da cidade " O problema em geral está na ocupação irregular das faixas ao longo dos córregos que prejudica o fluxo das águas, causando enchentes. A solução nesses casos envolve a remoção dessas construções, geralmente irregulares, e a canalização do córrego, podendo ser associada a reservatórios, conforme o caso", completa. As administrações municipais que se sucederam ignoraram o diagnóstico e as obras propostas.
Todos os especialistas ouvidos apresentam soluções, mas lembram que até aqui, as ações realizadas pelo poder público são medidas inadequadas para situações extremas.
Piscinões
19 em operação
1 em obras
90 a construir
Não existem mais terrenos disponíveis em localização adequada
Fonte: Estadão