Estes dias fiz a releitura do romance A noite sobre Alcântara, de Josué Montello. E me veio a constatação de que às vezes mais valem as cidades imaginárias, mantidas subjacentes às cidades reais, do que estas, invariavelmente deterioradas pelo "progresso" a qualquer preço – ou pelo abandono – e cujas características identificadoras acabam se perdendo no pó do tempo.
Na teia do romance vi-me no cais do Jacaré ou andando pelas ruas e ingressando naqueles palacetes e sobradões da cidade, na época em que ela era centro da aristocracia provincial. Privei da intimidade da Maria Olívia e de outros personagens de Montello, entre eles alguns barões que insistiam em resistir aos ventos renovadores da luta em favor da libertação dos escravos e do fantasma da República, que aos poucos se agigantava e provocava arrepios nos donos do poder em decadência.
O romance trata exatamente da decadência de Alcântara. Os fazendeiros vão perdendo propriedades. As propriedades se esvaziam e apodrecem, com os engenhos e a casa-grande comidos pelo mato e pelo abandono. Os escravos somem das senzalas e dos campos à procura de sobrevivência, ou vão ser vendidos, pelos senhores, na praça de São Luiz, a troco de banana. A riqueza para de chegar a Alcântara e a nobreza fica descalça ou com as roupas em frangalhos, comprometidas pela traça. Sobram, desertas, as ruas por onde haviam passado, em tempos idos, "as cadeirinhas de pau-santo, forradas de seda, com brasões bordados nas sanefas de veludo, levadas pelos ombros dos negros". E sobram, também, empilhados no sobrado de um antiquário e depois devorados por um incêndio, os mais belos móveis da cidade, os lustres finos, as alfaias, as faianças raras, as baixelas, pratarias, cômodas de jacarandá lavrado, lustres, serviços de mesa brasonados, tapetes, gobelins. A monarquia se esvai e a cidade, com a República, não se recupera.
A Alcântara da imaginação de Montello se contrapõe à cidade real, hoje, como ontem, cheia de enormes carências de toda ordem, embora festeje 61 anos na condição de patrimônio nacional e conte ali com uma base de lançamento de foguetes. Isto, por si só, deveria ter transformado e enriquecido a vida local, dotando o pequeno núcleo urbano, e seu entorno, de um mínimo de infraestrutura. Mais do que do passado, sua população precisa viver do presente.
Fonte: Estadão