Detentora de conhecimentos para obras de prevenção contra enchentes e seca, engenharia ainda não é ouvidaAcássia Deliê, Maceió (AL)Nenhuma das imagens recentemente divulgadas é capaz de traduzir o que realmente aconteceu em Alagoas e Pernambuco, nos dias 18 e 19 de junho último. Enquanto o Brasil inteiro ainda comemorava a vitória da seleção brasileira sobre a Coreia do Norte, na estreia da Copa do Mundo de Futebol, milhares de moradores dos dois estados assistiam, impotentes, à força das águas das chuvas e dos rios lhes tomar casas, ruas, estradas, móveis e até a vida. No noticiário local e nacional, a tragédia dividiu espaço com as cores verde e amarela. Ao vivo, 95 municípios transformavam-se num território colorido em tons de cinza, marrom e preto. Os dados compilados pela Secretaria Nacional de Defesa Civil apontavam, até 30 de junho, um total de 57 mortos, 33,3 mil casas destruídas ou danificadas e mais de 337,7 mil pessoas afetadas, grande parte delas pobre e sem perspectiva. Outras, como a professora Márcia Gomes dos Santos, 33 anos, moradora de Branquinha, viram sonhos concretizados escorrerem pelas enchentes.Branquinha foi um dos municípios alagoanos mais arrasados pelas águas do rio Mundaú, que ficou com toda a região central da cidade destruída. "Não sobrou um prédio público em pé", afirma a prefeita Renata Moraes. Sobre a espessa camada de lama que cobria as ruas, a professora Márcia caminhava com um objeto nas mãos. "Foi a única coisa que encontrei inteira na minha casa", informou. Era uma xícara. A casa, explicou a professora, fora comprada há cerca de seis meses por R$ 30 mil e recebeu uma reforma que custou mais R$ 15 mil. "Agora tem que reformar de novo. Pelo menos ela não caiu", dizia, resignada.Em União dos Palmares (AL), o rio Mundaú destruiu pontes, estradas e, principalmente, os bens da parte mais desassistida da população, que se espremia em moradias ribeirinhas. O que restou foi um amontoado de destroços que mudou completamente a paisagem. Chuvas ou rompimento de barragens?Quem enxerga o Nordeste como a terra do sol causticante e do sertão castigado pela seca não imagina como justamente a água provocou tamanha destruição. Mas essa não é a primeira vez que municípios alagoanos e pernambucanos sofrem com as cheias dos rios. Na Igreja Matriz de São José da Lage (AL), uma placa cravada na parede não permite o esquecimento: "Aqui, em 1829, José V. de Lima construiu uma capela dedicada a São José. Destruída pela enchente em 14/03/69. Restaurada uma das paredes em 1984". Depois de 1969, São José da Lage viu o rio Mundaú provocar enchentes em 1988, 1992 e 2000. Nenhuma delas chocou tanto a população como as deste ano. A força das águas foi tamanha que cinco dos seis tanques de armazenamento de etanol da Usina Laginha, em União dos Palmares, foram arrancados e levados pela correnteza. Cada um têm peso de 180 t e capacidade para 10 milhões de litros.Por isso, logo surgiram as primeiras especulações: as enchentes poderiam ter sido causadas pelo rompimento de barragens em Pernambuco, onde nascem os rios Paraíba e Mundaú. Uma das hipóteses sugeridas por especialistas em meteorologia é que açudes particulares espalhados pela bacia do Mundaú, ocupante de uma área de 4.126 km2, ficaram saturados e se romperam. Essa seria a explicação mais provável para a formação das ondas verificadas nos municípios atingidos.Os governos dos dois Estados nordestinos negam a hipótese. A média histórica anual de chuvas verificada durante todo o mês de junho, na região de Garanhuns (PE), onde estão as cabeceiras dos rios, é de 121 mm de água, de acordo com dados da Secretaria de Meio Ambiente e Recursos Hídricos de Alagoas. Somente nos dias 18 e 19 de junho choveu cerca de 470 mm, quase quatro vezes mais do que o previsto para o mês inteiro.Para a superintendente de Recursos Hídricos da secretaria, Rochana de Andrade Lima, o fenômeno foi "anômalo" e suficiente para provocar todos os estragos registrados. "Sobrevoamos a região e não encontramos problemas nas barragens que justificassem a quantidade de água das inundações. O nível dos rios subiu numa velocidade muito grande e, em alguns locais, se elevou quase 9 m. Além disso, o solo das cabeceiras, de rochas cristalinas duras, já estavam saturados por chuvas mais amenas. Aquela região tem uma topografia elevada, o que aumentou ainda mais a velocidade da água", esclareceu.Prevenção"Trata-se, talvez, de uma enchente secular", avalia Abel de Oliveira Filho, diretor regional do Sindicato Nacional das Empresas de Arquitetura e Engenharia Consultiva (Sinaenco) em Pernambuco, que também acredita na grande precipitação pluviométrica concentrada em curto período de tempo como o principal motivo das inundações. Para ele, entretanto, outros fatores foram determinantes para a catástrofe, como a ocupação desordenada das margens dos rios, que obstruiu o curso das águas com habitações e lixo. Questionado se seria possível evitar tragédias como essa, enfatizou: "A engenharia brasileira detém conhecimentos e capacidade para evitar esse tipo de acidente. Infelizmente, falta planejamento a médio e longo prazo das ações necessárias". De acordo com levantamento feito pela Confederação Nacional dos Municípios (CNM), o diretor do Sinaenco está certo. Nos últimos seis anos, o maior investimento do governo federal em trabalhos de prevenção a desastres foi realizado em 2008, com R$ 57,4 milhões pagos. O valor foi consideravelmente menor do que aquele gasto em ações de resposta, que só em 2009 absorveram R$ 1,1 bilhão. O levantamento foi feito junto ao Siga Brasil, que apresenta dados relativos ao Orçamento da União com seus programas, e considerou as despesas com os dois programas relacionados à Defesa Civil: "Prevenção e Preparação para Desastres" e "Resposta aos Desastres". "Essa imensa diferença entre os valores pagos em prevenção e em respostas mostra claramente o tão pouco que o governo vem gastando para prevenir os prejuízos causados pelos desastres naturais. A falta de investimento na prevenção tem relação direta com o aumento de gastos na resposta aos desastres, que cada vez mais afetam comunidades localizadas em áreas de riscos (no caso de chuvas) e causam prejuízos aos municípios que sofrem com a seca intensa", conclui o estudo da CNM.Outro problema questionado pela Confederação é a disparidade na distribuição de recursos federais para Estados e Municípios, referentes a ações de prevenção. Auditoria realizada em abril pelo Tribunal de Contas da União sobre a Secretaria Nacional de De fesa Civil (Sedec) mostra que, entre 2004 e 2009, aproximadamente R$ 933 milhões foram comprometidos com obras e serviços, mas apenas R$ 357,8 milhões foram efetivamente aplicados. Além disso, a Bahia (Estado de Geddel Vieira Lima, até recentemente Ministro da Integração Nacional, candidato ao governo da Bahia pelo PMDB) recebeu 37% dos recursos, seguida pelo Mato Grosso (17%) e São Paulo (8,9%), enquanto outros Estados vitimados por recentes desastres naturais, como o Rio de Janeiro e Santa Catarina, receberam parcela ínfima de recursos.Os questionamentos dos municípios ganham força em um ano marcado por um número recorde de desastres naturais. Entre o dia 1º de janeiro e 16 de junho de 2010, a Sedec reconheceu 1.635 portarias emitidas de Situação de Emergência ou Estado de Calamidade Pública, número superior aos 1.389 registrados em todo o ano de 2009. Somente o Nordeste emitiu 472 portarias, 94 delas em Pernambuco e 50 em Alagoas. A maioria refere-se a eventos relacionados às chuvas. Em segundo lugar, aparecem os eventos relacionados à seca, totalizando 588.RespostasSe faltaram ações preventivas, as ações de respostas aos desastres estão a pleno vapor. Desde o dia das enchentes, os esforços empreendidos para a recuperação das cidades atingidas são inúmeros. Centenas de máquinas trabalham na limpeza de ruas, recuperação de acessos rodoviários e abastecimento de água onde os sistemas foram rompidos pelas enxurradas. Equipes da Agência Nacional de Águas reestruturam, junto aos órgãos estaduais competentes, as estações pluviométricas destruídas, além de montar um sistema de alerta contra cheias.As primeiras verbas emergenciais também foram logo disponibilizadas. No dia 24 de junho, o Ministério da Integração Nacional liberou a primeira parcela, no valor de R$ 50 milhões, sendo R$ 25 milhões para cada um dos dois Estados atingidos. Os governos estaduais igualmente se mobilizaram. No dia 2 de julho, foi a vez do Ministério da Saúde liberar R$ 21,8 milhões para Alagoas e R$ 26,8 milhões para Pernambuco, para a reestruturação da rede de Atenção à Saúde. Por causa da burocracia estatal, a verba do governo federal destinada à recuperação da infraestrutura destruída nos Estados nordestinos só deverá chegar um mês depois, após a realização de um levantamento detalhado de edificações destruídas, como pontes, redes de energia, estradas, prédios públicos e habitações. Somente em Alagoas, os danos materiais, ambientais e os prejuízos econômicos e sociais foram contabilizados em R$ 954 milhões.Para o diretor do Sinaenco-PE, Abel de Oliveira Filho, as autoridades estão tomando as providências cabíveis a curto prazo, mas "deve ser implementado a médio prazo um programa de controle de vazão dos rios, através da construção de barragens reguladoras, bem como controle de ocupação das margens nas áreas urbanas. Além disso, deve ser desenvolvido um programa de educação ambiental junto à população, esclarecendo sobre a correta disposição do lixo e preservação das margens, entre outros aspectos".Desastre e CatástrofesR$ 57,4 milhões Investimentos em prevenção em 2008R$ 1,1 bilhão Gastos com recuperação em 2009Senado estuda Política Nacional deSegurança de BarragensLevantamento do Ministério da Integração Nacional nos anos de 2007 e 2008 mostra que o Brasil possuía 6.928 barragens, 2.898 localizadas no Nordeste. A Agência Nacional de Águas (ANA) afirma que monitora sistematicamente a operação - ou seja, a quantidade de água - de 528 barragens localizadas no Nordeste, sendo 22 em Alagoas e 96 em Pernambuco. O monitoramento é feito com base em informações prestadas pelos proprietários das barragens, com os órgãos dos governos estaduais, o Departamento Nacional de Obras contra a Seca (Dnocs), a Companhia Hidrelétrica do São Francisco (Chesf), a Codevasf, entre outros, que também são responsáveis pela inspeção periódica das estruturas físicas dos empreendimentos hídricos. Com as informações repassadas é consolidado mensalmente o Boletim de Monitoramento dos Reservatórios do Nordeste do Brasil. O último foi publicado pela ANA justamente em junho de 2010. Das 96 barragens pernambucanas, 46 aparecem como "sem informação" sobre o volume de água existente, incluindo quatro construídas na bacia do Mundaú.O levantamento do Ministério da Integração Nacional foi feito a partir de imagens de satélites, somente identificando espelhos d'água com, no mínimo, 20 ha. Nem todas as barragens existentes no Brasil, portanto, são cadastradas pelo governo federal. Para isso, tramita na Comissão de Serviços de Infraestrutura do Senado o Projeto de Lei PLC 168, que estabelece a Política Nacional de Segurança de Barragens e cria o Sistema Nacional de Informações sobre Segurança de Barragens, que deverá, entre outras ações,criar um Cadastro Nacional de Barragens, a ser coordenado pela ANA. (AD) Fonte: Estadão